Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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quinta-feira, 31 de maio de 2012

A verdadeira história de Eliezer Kamenesky

No blog consagrado a António Quadros encontramos uma crítica ao livro Fernando Pessoa uma Quase Autobiografia de Cavalcanti Filho intitulada A verdadeira história de Eliezer Kamenesky. Apresentamos abaixo o texto publicado no blog http://antonioquadros.blogspot.pt/, para o qual remetemos os leitores que queiram acompanhar as notícias que aí forem sendo publicadas.   


A verdadeira história de Eliezer Kamenesky
 
 
 
Diz Cavalcanti Filho, que a sua grande descoberta ao escrever esta obra, não foram (como seria de supor) as dezenas de novos heterónimos que enumerou, mas sim a verdadeira história por detrás da poesia de Eliezer Kamenesky. Julga-se que Fernando Pessoa, que em 1932 prefaciou o livro de poemas Alma Errante do escritor russo, ajudou também na preparação da publicação desta obra.
Cavalcanti vai mais longe, dir-se-ia, vai longíssimo: segundo o que escreve, Fernando Pessoa não só ajudou Kamenesky a publicar Alma Errante, como lhe escreveu vários poemas (pelo menos 37 em 55), o que o leva, na passada, a dizer que Kamenesky é mais um heterónimo de Pessoa. Haverá salto maior do que este num livro que levou 8 anos a preparar com a ajuda de dois investigadores em Portugal?
De que forma é que Cavalcanti Filho chega a estas conclusões que seriam interessantes, sem dúvida, para todos nós...?, com base no que o sr. Martins, actual proprietário de um antiquário em Lisboa lhe contou, depois de uma conversa, imediatamente a seguir a Cavalcanti lhe comprar os óculos de Fernando Pessoa, mais a bengala que o poeta nunca usou e o resto que ali estava à venda.
Vai daí, que a sua maior descoberta não passa de uma remota hipótese, para não dizer boato, depois de fechar um negócio, e nós ficamos na mesma, a achar que estas 700 e tal páginas não correspondem ao que o autor promete.
Entre outras coisas, a saber: promete os heterónimos (127 + 75...), promete devolver Coelho Pacheco a Pessoa (Coelho Pacheco é Coelho Pacheco, de carne e osso e poeta também, como provou Teresa Rita Lopes), promete Kamenesky da forma que vimos, promete tudo acerca da vida de Pessoa e da sua ascendência (fidalga e judaica?) e da sua homossexualidade, e das suas diopetrias, (verdadeiras, indispensáveis e interessantíssimas revelações) tudo isto a culminar, na ideia de que, afinal, Fernando Pessoa "não tinha imaginação", apesar de todos suspeitarmos que, pelo menos, tinha alguma.
A páginas tantas, quero dizer, a páginas todas, chegamos à conclusão que não saímos do mesmo sítio, mas que foi uma longa caminhada. Saímos ainda com a certeza, ao fecharmos a obra, de que o verdadeiro estudo sobre Pessoa está na mesma, isto é, em curso, mas noutros lugares, não aqui, apesar do
aparato.
 
Diz Cavalcanti Filho, que a sua grande descoberta ao escrever esta obra, não foram (como seria de supor) as dezenas de novos heterónimos que enumerou, mas sim a verdadeira história por detrás da poesia de Eliezer Kamenesky. Julga-se que Fernando Pessoa, que em 1932 prefaciou o livro de poemas Alma Errante do escritor russo, ajudou também na preparação da publicação desta obra.
Cavalcanti vai mais longe, dir-se-ia, vai longíssimo: segundo o que escreve, Fernando Pessoa não só ajudou Kamenesky a publicar Alma Errante, como lhe escreveu vários poemas (pelo menos 37 em 55), o que o leva, na passada, a dizer que Kamenesky é mais um heterónimo de Pessoa. Haverá salto maior do que este num livro que levou 8 anos a preparar com a ajuda de dois investigadores em Portugal?

De que forma é que Cavalcanti Filho chega a estas conclusões que seriam interessantes, sem dúvida, para todos nós...?, com base no que o sr. Martins, actual proprietário de um antiquário em Lisboa lhe contou, depois de uma conversa, imediatamente a seguir a Cavalcanti lhe comprar os óculos de Fernando Pessoa, mais a bengala que o poeta nunca usou e o resto que ali estava à venda.

Vai daí, que a sua maior descoberta não passa de uma remota hipótese, para não dizer boato, depois de fechar um negócio, e nós ficamos na mesma, a achar que estas 700 e tal páginas não correspondem ao que o autor promete.
Entre outras coisas, a saber: promete os heterónimos (127 + 75...), promete devolver Coelho Pacheco a Pessoa (Coelho Pacheco é Coelho Pacheco, de carne e osso e poeta também, como provou Teresa Rita Lopes), promete Kamenesky da forma que vimos, promete tudo acerca da vida de Pessoa e da sua ascendência (fidalga e judaica?) e da sua homossexualidade, e das suas diopetrias, (verdadeiras, indispensáveis e interessantíssimas revelações) tudo isto a culminar, na ideia de que, afinal, Fernando Pessoa "não tinha imaginação", apesar de todos suspeitarmos que, pelo menos, tinha alguma.
A páginas tantas, quero dizer, a páginas todas, chegamos à conclusão que não saímos do mesmo sítio, mas que foi uma longa caminhada. Saímos ainda com a certeza, ao fecharmos a obra, de que o verdadeiro estudo sobre Pessoa está na mesma, isto é, em curso, mas noutros lugares, não aqui, apesar do
aparato.

António Quadros Ferro

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Incompreender Pessoa - Teresa Rita Lopes

Se deixassem este livro ser apenas aquilo que é, obra de um apaixonado coleccionador de estórias, não aceitaria o pedido do Público para o criticar. Recebi a edição brasileira há mais de um ano e nem eu nem o Álvaro de Campos nos manifestámos então. Sou militantemente cidadã da pátria língua portuguesa e gosto de gostar do que os nossos concidadãos brasileiros produzem. Mas a obra adquiriu tal difusão, oferecida até pelo autor às bibliotecas escolares deste país, que curvei-me ao dever de me manifestar.

Os que aplaudem, leram? As 710 páginas? Eu li. Quantos desses poderão silabar estas 4 letras?

Como tantos falam de Pessoa dele sabendo tão pouco, este "simples guia para não iniciados" (p.13), arrisca-se a modelar o saber de incautos e incultos leitores. Essa a questão. Mas como explicar que a festejada "quase autobiografia" se aplique a dar do biografado este deprimente retrato do bêbado louco megalómano, aspirante ao prémio Nobel (p.177, 465)), que ia cozer as suas bebedeiras na cave da loja do judeu russo para quem fabricou poemas a troco de uns trocos, incapaz sexualmente por ter sido mal dotado pela Natureza, mas "pretensioso", exibindo anel de brasão, "vaidoso", vestindo-se e calçando-se nas lojas mais caras e elegantes, quase cegueta mas não usando lentes grossas por lhe fazerem os olhos pequeninos…? Para continuar a compor o retrato do pobre diabo - de "triste figura", diz - o Biógrafo inventa-lhe "amigos de rua"(p.163): bêbados, pedintes, loucos, arruaceiros. (E as provas disso?) Espanta-se que P. não tivesse "amigos importantes", "alguém com posses; um remanescente da nobreza", "um político republicano", um académico, um "empresário de peso". Só "párias", lamenta. E afiança: "Pessoa chegou mesmo a pensar em casar"com a filha da lavadeira (p.281)! No balanço dos "heterónimos"(p.396), lastima, de novo, a ausência de um " membro da nobreza" (ignora o Barão de Teive e Vicente Guedes). Mesmo que tudo isso fosse verdade (e não é), eu continuaria a perguntar-me porquê essa obstinação em avacalhar a imagem do seu ídolo. É caso para expôr a essa junta médica convocada para autopsiar P. que lhe permitiu anunciar triunfalmente o que, há 17 anos, o Dr. Francisco Fonseca Ferreira escrevera em livro: pancreatite aguda.

A verdade é que nunca ninguém viu P. bêbado nem com delirium tremens (repare-se na firmeza da letra) nem tresloucado. O B. julga-o segundo os seus valores e dá-lhe lições de moral além-túmulo. Não entendeu a grandeza desse "doido", desse "infeliz" (assim o trata) de quem Casais Monteiro, seu discípulo, disse que foi o homem mais livre que conheceu. Não entendeu que P. pagou toda a vida o preço dessa liberdade: permanente penúria económica, ausência do palco dos sucessos sociais, solidão irremediável porque os altos destinos cumprem-se sempre a sós.

Apetece perguntar: se o biografado é esse pobre diabo, porque não se ficou pela obra? Vendo bem não teria sido melhor porque este livro é uma montagem de textos pescados a esmo, de P. e seus "outros", mas sem atribuição, tudo misturado com a prosa do B. que quis – ingenuamente o declara - imitar o estilo de P. Aqui e ali introduz, sempre sem dar o seu a seu dono, afirmações alheias. Ficamos assim a braços com uma tremenda amálgama de citações - estropiando, inúmeras vezes, não só palavras mas frases inteiras. Resulta um "coquitéu" (como dizem os brasileiros) com pedaços de poemas, que cita como prosa e mistura com outras prosas que não diz de quem são. Chama-lhe, às vezes, "coleta" (p.166). Ao atribuir alguns textos, erra: por ex., p.227: não são de Campos, os versos da epígrafe, mas do ortónimo; p.246: o "epitáfio" é poema de Caeiro, não de Pessoa; p.652: o poema é do ortónimo, não de Campos! E até erra títulos de livros. E também as datas. Erra e baralha um pouco tudo, por todo o lado. Não cita as suas fontes por serem muitas, diz, mas compraz-se em notas quilométricas, tipo entradas de enciclopédia ou curiosidades de almanaque, que invadem também o corpo do texto.

Também não são de fiar as informações biográficas. Quanto à ascendência de "fidalgos e judeus" que P. disse ser a sua, são muito mais que dois! Interpretando como basófia o orgulho de P. nessa ascendência, o B. nunca poderá entender a Mensagem, em particular, e o seu autor, em geral. O profundo sentimento de ter uma missão a cumprir, como "criador de civilização", "estimulador de almas", vem-lhe de longe, quando, em Durban, se apercebeu do que chamou a nossa "descategorização civilizacional", e decidiu traduzir Os Lusíadas e escrever sobre Vasco da Gama. Sentir-se ligado por laços de sangue à velha cepa lusitana correspondia à sua busca de "quem sou", antecedendo "a busca de quem somos", de Mensagem. Até o guia de Lisboa, de cuja autenticidade o B. duvida – sem fundamentos nem argumentos - foi escrito como parte de um amplo projecto, que o nomeia, para dar a conhecer ao mundo o nosso património cultural.

É insignificante o que nos diz sobre a família de Tavira, cujo contacto, reatado desde o primeiro regresso a Portugal, em 1901, foi decisivo para a assumpção da sua identidade como detractor da Igreja de Roma, carrasca dos seus antepassados judeus, e até para a sua entrada na vida adulta, em 1909,como editor da Empresa Íbis em que essa família o ajudou a lançar-se, angariando-lhe como primeiro (e único) trabalho, junto de correligionários seus, republicanos, maçons e anti-clericais, a edição de um jornal algarvio, "republicano radical", de Loulé. O "livre pensador" que um tio avô, Jacques Cesário Pessoa, ainda hoje declara ser numa lápide do cemitério de Tavira, cedo se lhe impôs como exemplo.

Quanto à Mãe: é falso que não fosse "religiosa" (p.27), o que seria estranho numa família açoriana de tradição católica. (Será por isso que faz P. "ateu"?) Não só o baptizou como, em Durban, o inscreveu numa escola católica de freiras irlandesas, onde fez a Primeira Comunhão. E o seu verdadeiro primeiro poema, a ela dedicado, é uma engenhosa paráfrase da Avé-Maria. Além disso, ensinou-o a rezar: pela boca de Campos, fala, num poema, da sua "infância que rezava".

Quanto ao Pai, também não é verdade que não tenha tido verdadeiro contacto com o filho ("que poucas vezes viu", diz p.48). O B. reproduz a foto do maço das cartas que ele enviou à Mãe, durante os meses em que se ausentou para tratar a tuberculose, mas não as leu (e até já foram publicadas). Aí teria sabido que o "Fernandinho" tinha ido para essas termas de Caneças com a avó materna e o pai, que dele fala nas cartas. Se um ano antes, com 4 anos, a criança-prodígio já lia e escrevia - como diz - guardou seguramente na memória essa relação a que só a morte pôs cobro.

Também não é verdade que a tia-avó Mª Xavier Pinheiro fosse a velha tonta "conhecida por escrever lamentáveis poemas românticos e viver cantando canções de amor" (p.45). Como sempre, sacrifica a verdade às anedotas em que se compraz. Pelo contrário, o sobrinho-neto, com quem longamente conviveu, tinha-a em grande estima e na nota biográfica que fornece a Côrtes-Rodrigues cita mesmo, por inteiro, um poema dela. Muitas outras notícias não são verdade mas não tenho aqui espaço para as (d)enunciar. Até as biografias fictícias dos heterónimos têm erros: diz de Reis que é "judeu português"( p. 230, e repete p. 253) , de Campos que é "pagão", acrescentando que Pessoa é "ateu" (p.230) – esta nem lembrava ao Diabo!

A jóia da coroa do livro é o capítulo sobre os 127 "heterónimos" puro sangue, mais 75 que, embora não "considerados verdadeiros heterónimos", entram na conta; "sem contar" – mas vai contando – "os 5 personagens reais", "o que somaria 207 nomes"(p. 396)! Para começar, não sabe o que heterónimo quer dizer: Fernando Pessoa, Fernando António e F. Nogueira Pessoa contam na lista como 3 heterónimos! P. explicou que heterónimos são só 3, Campos, Reis e Caeiro, os únicos com vidas e estilos próprios, interagindo uns com os outros, sendo os demais autores de textos literários, "personalidades literárias". Na sua sôfrega caça, o B. até contabiliza assinaturas casuais em livros ou papéis soltos a que P., estudioso de grafologia, se aplicava: ex.:Jerome Gaveston, de que Saveston é variante, (contam ambos na lista!). Também contabiliza (n.º108) assinaturas em livros alheios! Outro erro é listar pseudónimos ocasionais, que P. inventou às dezenas, para efeitos jornalísticos: Tagus e J.C.Henderson Carr ganharam prémios com charadas, em Durban, no jornal local. Este último, reduzido às iniciais, conta 2 vezes! Pseudónimos de charadistas, ocasionais colaboradores dos jornalecos que, na sua juventude, inventou, A Palavra e O Palrador, são às dúzias (Lili, Pip, Rabanete, Pimenta, Gee…).Contabiliza também os "funcionários": directores dos jornais e suas secções. E os pseudónimos "Um irregular do Transepto" e "Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência" - assinando, em 1934, um artigo para o jornal A Voz e, em 35, sátiras contra Salazar. (O pseudónimo esconde uma identidade, o heterónimo revela-a!) Muitos são apenas nomes casuais com que o B. ou o investigador holandês Stoker toparam: 12 trazem a indicação "Apenas um nome indicado por Stoker". Até contabiliza títulos: "Serradura", poema de Sá-Carneiro! Outra prática é dar n.º de heterónimo a personagens de ficção, algumas só planeadas, como no projecto desse drama Ultimus Joculatorum, que lhe fornece mais 6! As personagens não escrevem, são escritas, não são autores mas assunto! Mas vão para a lista: Abílio Fernandes Quaresma, que torna a contar como Quaresma Decifrador ; o Tio Porco, também personagem das novelas "policiarias"; Marcos Alves, protagonista de uma novela; Fausto e Marino, de peças homónimas - e outros. Personagens também – de "romances do inconsciente", expressão de P. – são esses "espíritos" que ele psicografa: rendem uns 13 lugares, sendo 3 deles erradas grafias do mesmo. Mais 3 lugares para os amigos imaginários da infância, de que não há rasto escrito.

Quando alguém, num texto de P., se exprime na 1.ª pessoa, vira imediatamente heterónimo! E o B. caça-o e baptiza-o : o "Cego" que compõe quadras bandarristas (aparição única) é um ex. entre outros.

Como heterónimos contam pessoas reais, como o Padre Matos que P. ataca através da "personalidade literária" Joaquim Moura Costa, nos seus jornais O Fósforo e O Iconoclasta, (em 1909 - não em 1902, na Palavra, como o B. inventa). C.Pacheco também existiu (como provei no Jornal de Letras de 3.5.2011), assim como Caturra Júnior e Bi (o sobrinho Luís Roza Dias). E até M.N. Freitas – o primo Mário Nogueira de Freitas – conta na lista! No final ainda contabiliza mais 5, nomeados – diz – por alguns "estudiosos": António Botto, D. Sebastião, Ophelia, "anti-heterónimo" (mas conta à mesma!) e ainda acrescenta, por sua conta, Eliezer Kamenezky!

Muito ficou por dizer, mas – sorte do B.! – atingi os caracteres concedidos.

Teresa Rita Lopes
Publicado originalmente no jornal Público de 25 de Maio de 2012.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Campos manifesta-se sobre os seus 207 colegas heterônimos (127+75+5)

                          
 Carta psicografada por Teresa Rita Lopes

Prometi analisar com vagar, numa anterior comunicação, a “Quase autobiografia “ do Fernando, da autoria de José Paulo Cavalcanti Filho: aqui estou, contrariadamente, a cumprir a promessa. Mas imaginar esse livro a servir de manual aos nossos estudantes  – que têm todos Pessoa nos programas – causa-me tal calafrio que dou comigo a rapar da pena para essa inglória tarefa! É que o abnegado ex-ministro declarou publicamente estar disposto a abdicar dos seus direitos de autor para, com eles, porem nas mãos dos estudantes portugueses esse instrumento indispensável. (Lembra-nos outro político mas esse, ao menos, deu-lhes um objecto útil, um computador, enquanto que este devia ser retirado do mercado. Devíamos arranjar, para controlar estas situações, algo como a ASAE, que nos defende de alimentos impróprios para consumo.)
Vamos por partes – que o livro tem 700 e tal páginas !
Comecemos pelo assunto mais badalado: os 207 “heterônimos” que o autor se gaba de ter encontrado: 127,autênticos puro sangue, mais 75 que “embora não sejam considerados verdadeiros heterónimos”, não deixam de somar (é o Dr. que faz as contas) 202, a que acrescenta ainda “os cinco personagens reais” nomeados – “o que somaria 207 nomes” (´Cavalcanti dixit, p 396. Veja que também sei latim!)
 Oh Sr. Dr. em leis, coleccionador de “heterônimos”! O Sr., tão culto que abre os capítulos com epígrafes em latim, e que fala tanto de heterossexualidade e da nossa (minha e do Fernando) homossexualidade, não sabe que “hetero”, em grego, quer dizer “outro”,“diferente”?! Como é que o Sr. faz aparecer  “Fernando Pessoa”  como heterónimo de si próprio (é o n.º 44) ! E acrescenta mais dois à lista: “Fernando António” (nº 41) e “F. Nogueira Pessoa” (n.º37) ! Ah! ainda mais outro: Ferdinand Sumwan, n.º 40, (personagem de um drama de que já vou falar, “Ultimus Joculatorum”) que o Fernando explica, e o Sr. repete, ser ele próprio. Sugiro-lhe que some mais um: “Fernando Pessôa”, antes de ele ter retirado ao seu nome, em 1916, o acento circunflexo! Veja se percebe de uma vez por todas que o que o Sr. faz é coleccionar os nomes próprios que encontra nos textos do Fernando! Com este “critério de classificação” que, segundo diz (ibidem) usou, mas é coisa que o Sr. não tem, chegaria facilmente aos 500, incluindo Deus e a Virgem Maria e Cristo e Moisés e todas essas figuras bíblicas que o Fernando cita. Satanás já o Sr, lá meteu! (é o seu n.º 69).
Antes de empreender a sua lista, e o seu livro, o Sr. devia ter aprendido - o Fernando, na sua obra, matou-se a explicar - a diferença entre “heterónimo”, “personalidade literária” e “pseudónimo”. Heterónimos somos só três: eu, o Caeiro e o Reis – só através de nós “voa outro”, disse. Até o Bernardo Soares, que se fartou de escrever, não passa de “personalidade literária” ou “semi-heterónimo” – frisou o Fernando. É como se, das inúmeras sombras que ele projectou em seu redor, apenas três se tivessem soltado dos pés de quem as produziu. Só nós os três fomos à vida pelo nosso próprio pé, interagimos e escrevemos com nosso estilo próprio. Quem não perceber isto, não tem competência para abordar a obra pessoana. O Sr. não entende que não pode fazer emparceirar as nossas três pessoas e as nossas três obras (com que o Fernando, ao longo da vida, foi construindo o que chamou um “drama em gente”) com todos os nomes próprios em que tropeça nas nossas páginas?! Tudo o lhe vem à rede, é peixe! – isto é, “heterónimo”! O Sr. até dá esse estatuto a assinaturas casuais pescadas em livros e papéis soltos, algumas até riscadas! Fique sabendo que o Fernando estudava grafologia e se treinava a fazer assinaturas em tudo o que era papel: esse o caso de Jerome Gaveston, por exemplo, (seu “heterônimo” n.º 69) que nunca escreveu uma linha de prosa ou verso, de quem nada se sabe – o que é o caso de variados outros dos seus “heterônimos”.
E também não pode confundir heterónimo com pseudónimo, como faz constantemente, por exemplo a respeito de Tagus, (um concorrente , por sinal batoteiro, a prémios de charadas, num jornal de Durban), classificado como o 111º da sua lista - a quem  até o Sr. chama “pseudónimo dos tempos de Durban”. (Solucionava as charadas enviadas para o jornal por outro pseudónimo do esperto rapazinho, J.G.H.C. – como o Richard Zenith descobriu!). O pseudónimo é isto: uma máscara que encobre quem a usa, o heterónimo (invenção pessoana que o Sr. não pode malbaratar) revela o ser aos seus próprios olhos (“Fingir é conhecer-se”, disse Pessoa.)
Pseudónimos são também os seus “heterôninos” n.ºs 115 e 116: “Um Irregular do Transepto” (sob o qual escreve, em Janeiro de 1934, ao jornal católico A Voz, já sobre a Maçonaria) e “Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência”, que assina poemas panfletários contra Salazar, em 1935.
Pseudónimos de charadistas abastecem a sua lista com dúzias de “heterônimos” - que não são mais que ocasionais colaboradores dos jornalecos que o Fernando fabricava com um entusiasmo infantil que durou para lá do admissível (reúna de novo a junta médica, que contratou para fazer a autópsia do Fernando, para lhe avaliar este atraso mental). Até a “Lili”, “boneca de louça da irmã Teca”, que “escreve incompreensíveis charadas para um desses jornais infantis, A Palavra”, recebe um nº, o 77, na sua lista!
(Mas que orgulhosa que a Lili deve estar de passar à posteridade como “heterónimo”, num livro imorredoiro!) Noutro, O Palrador, que o Fernando continuou a compor depois do regresso a Lisboa, em 1905 (brincar aos jornalistas com mais de 17 anos é mais que razão para a tal junta médica!) também lhe fornece nomes em barda, até um nomeado “Trapalhão” (longe de mim estar a fazer-lhe qualquer insinuação!).
Outra habilidade sua é confundir heterónimo com personagem de ficção – que não escreve, esta, é escrita! não é autor, é assunto! Fausto é a personagem central do drama com esse título! Marino, idem, idem! Marcos Alves, a mesma coisa: neste caso, de uma narrativa. Abílio Fernandes Quaresma, seu n.º 4, é o mesmo caso, e ainda por cima conta duas vezes na sua lista, assim e como “Quaresma decifrador”. Outro decifrador  desses contos “policiários” com que o Fernando se regalava, , é o ex-sergeant William Byng (até adiante lhe foge a boca para a verdade e lhe chama “personagem”!). O “Tio Porco” (com sua licença!), que contracena com Quaresma, é a mesma coisa!  O “Autor da Carta da Argentina”, assim  chamado por si, na lista, é também a personagem de um conto em forma de carta, que se exprime na primeira pessoa! O “Cego”, também por si assim denominado, (n.º 25) , limita-se a entoar umas quadras de inspiração sebastianista-sidonista, depois das quais nunca mais apareceu! Se pegar em todas as personagens que, em poemas, se exprimem na 1.ª pessoa, duplica a sua lista: Olhe, o D.Sebastião, da Mensagem, que exclama: “Louco, sim, louco porque quis grandeza”! Será por isso que também acaba por admiti-lo como “heterônimo”?
Personagem é igualmente Jacob Dermot, nome filado numa página de diário (atenção, não é de 1900, como escreve, mas de 1906!) em que o Fernando confessa:”Dificuldades na execução mental de Jacob Dermot”. O Sr. até adopta como heterónimos personagens de livros alheios: é o que nos diz (p.378): Martin Hewitt, da obra de Arthur Morrisson (não Morrinson, como escreve!) : As Aventuras de Martin Hewitt, investigador (1896).
Também às personagens de um drama, Ultimus Joculatorum, o Sr. confere estatuto de heterónimo: Caesar Seek , n.º 20( não Seerk!); Jacob Satan (n.º 66), a propósito da qual atribui ao Fernando uma grosseria que ele não cometeu: diz que ele definiu J.Satan como “um espírito de M.”, abreviatura pudica para “merda”. Oh Sr. Dr. ! O que o Fernando escreveu, e em inglês, foi “a spirit of ill”! E o Sr. acrescenta: “Mestre de ternura”, saltando duas linhas desse texto pessoano, entre “mestre” (master” ) e “of tenderness”! Isso da ternura refere-se a “uma mulher”, que vem a seguir, a que até encarou chamar Magdalena, mas depois riscou. Que trapalhada! Outra personagem desta peça, a que o Fernando hesita chamar “Erasmus(?) ou Dare(?)” , rende dois lugares na sua lista! Vê-se bem que o Sr. sabe fazer render o capital – como não, se trabalha para o Banco Mundial (é o que apregoa na badana do livro)!
E ainda por cima abastece a sua lista com nomes que viu num livro do holandês Stoker, sem saber sequer a que correspondem: limita-se a dizer: “Mais um nome indicado por Stoker”, como um tal Major Bastos, a que acrescenta este esclarecimento iluminante: “segundo quem (o tal Stoker) parece ser pessoa reservada para assinar textos”. E a seguir, cedendo ao seu permanente tique coleccionista em relação aos  nomes próprios, deriva para outros Bastos, incluindo “um senhor Bastos que está em texto de propaganda que fez para as Tintas Berryloid”. (Oh Sr. Coleccionador de nomes!!! ) Com o habitual esclarecimento (“Mais um nome indicado por Stoker”!) nos aparece uma Maria Aurélia Antunes, um Álvaro Eanes, um Antony Harris, um Augustus West, um Aurélio Biana (devia ser do Norte!), um Darm Mouth, um Fr. de Castro, um Francis Neasden, um Frederico Barbarossa, um Isaías Costa,  um Jacinto Freire – e não tenho pachorra para continuar a enumerar!
Outro dislate seu é pôr na lista dos heterónimos os “espíritos” que o Fernando se entretinha a invocar, através da escrita mediúnica – a que ele chamava “romances do inconsciente”. Estas personagens – de “romances”, repare! -  não são autores, são só isso, personagens dessas ficções, com quem, aliás, o Fernando lidava ludicamente. Mas rendem aí uns treze lugares na sua lista!
E o que dizer do “heterônimo” “Serradura”, que o Stoker nomeia e o Sr. repete (p.388) e que é simplesmente o título de um poema do Sá-Carneiro? E o Sr. até diz que sabe disso! Mas sempre soma mais um!
E esses amigos das brincadeiras da infância que não deixaram texto literário nenhum (por isso não podem ser considerados “personalidades literárias” e muito menos heterónimos!), o Chevalier de Pas, o Capitaine Thibeaut, o Quebranto de Oessus? E retire também da sua lista as pessoas que existiram, sim senhor! como o Padre Mattos, (n.º 93) cujo nome, diz o Sr., foi “inspirado no psiquiatra  Júlio de Mattos!” (Esta intuição certeira que o Sr. tem para explicar a origem dos nossos nomes!). E não é que até ao psiquiatra o Sr. passa a chamar heterónimo? : “Como esse heterônimo, responde Pessoa ao inquérito da revista A Águia”(p.387)… Que trapalhada, Sr.Dr.! E olhe lá, se diz que o seu M.N.Freitas é o primo Mário Nogueira de Freitas, porque é que o faz constar na lista? Para contar no total dos 207, claro! E olhe que o Caturra Júnior (p.347) também existiu! Assim como o C.Pacheco e o Bi (disse-me o sobrinho Luís que assim lhe chamavam, em criança).
Deixe-me saudá-lo por ter essa imaginação que diz faltar ao Fernando: a revelação das origens dos nomes dos “heterónimos” são disso prova, como a que encontrou para o do serralheiro António e para o meu: o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Também apreciei imenso a aproximação que fez entre a corcundinha Maria José, que contemplava o serralheiro bem amado da janela, e Ofélia, que também aí se debruçava para ver passar o Fernando. Ah! delirei sobretudo com a metamorfose do Fernando em serralheiro, chamado António porque se está mesmo a ver que era a projecção do Fernando António ! Mas do que mais gostei foi do seu final, em que perfilha as opiniões de alguns “estudiosos” - diz - segundo os quais o Fernando teria como heterónimos D.Sebastião , António Botto, Mário de Sá-Carneiro, sendo a Ofélia um “anti-heterónimo”! E de seu livre alvedrio, o Sr. acrescenta Eliezer Kamenezky! E entram todos na contagem!
Continuo sem perceber, como disse na comunicação anterior, porque é que o Sr. - que lamenta que não haja nesta longa lista de heterónimos “um homem de sucesso ou membro da nobreza” - se identifica de tal modo com o Fernando, “esse homem infeliz”, e chama ao seu livro uma “quase autobiografia”!
Sr. coleccionador, continue a coleccionar todos esses pertences do Fernando, desgraçadamente vendidos avulsos em leilões, que com isso presta um grande serviço à pátria língua portuguesa! Mas não cumpra a sua ameaça: de contaminar os nossos estudantes, já tão vítimas da Internet, com as falsas notícias que o seu livro espalha, através duma escrita atrapalhada e coxeante.
Apoio o Fernando na sua militância por uma “pátria língua portuguesa”, para que conta sobretudo com o nosso amado Brasil, e por isso sou, como ele, implacável para com todas as ofensas que se façam à nossa língua e à nossa cultura, pensando e escrevendo.

P.S.
Já composta esta missiva, chegou-me às mãos – da vista e do entendimento – a reacção do autor do livro em causa, que injuriosamente me apoda de louco e de bêbado e me acusa de o não ter lido. Ora essa! Como prometi na anterior comunicação, depois da minha reacção à entrevista em que o autor sintetiza as suas teses - apenas uma introdução a uma crítica a valer - mergulhei de cabeça na caudalosa biografia.
Aí fica a prova. Se a leitura me continuar a inspirar comentários, talvez reincida noutra crítica a valer. 

Teresa Rita Lopes

domingo, 6 de maio de 2012

Carta-monólogo de Álvaro de Campos

Carta-monólogo de Álvaro de Campos
comunicada mediunicamente a Teresa Rita Lopes

Num iluminador semanário com o nome do astro-rei, de 20-4-2012, deparei com uma entrevista em que o entrevistado, José Paulo Cavalcanti Filho, “advogado pernambucano muito bem sucedido, ex-ministro da justiça de José Sarney”, como é apresentado pela entrevistadora, declara que “a obra de Pessoa é um testamento esperando que alguém o desvende”. O que só agora acontece – com a sua “quase autobiografia”, como a sub-intitulou, de tal maneira, confessa, se identifica com o Fernando. Tenho que reconhecer que é um gesto de grande coragem, visto que o apresenta como bêbado e homossexual, embora honestamente confesse a sua fracassada tentativa de encontrar alguma prova documental, quanto ao último ponto: por exemplo, uma “foto” do Fernando que “explicitasse” (diz ele) essas práticas. (Confesso que o gáudio de imaginar uma dessas fotos me solta o riso e desenruga a mente, que amanheceu chuvosa, como o dia. Desculpe, Fernando! Obrigada, senhor ex-ministro!). Mais: espreitando o Fernando pelo buraco da fechadura das suas investigações, o senhor ex-ministro - que biograficamente falando se identifica com o Fernando, não esquecer - narra as bebedeiras que ele ia cozer para a loja do amigo Eliezer, alfarrabista e judeu russo (“numa cama de arames”, precisa) para quem fabricava poemas a troco de uns trocos. Regozijemo-nos com mais estes inéditos para o activo do Fernando! Aqueles indigentes versos reunidos no livro Alma Errante, assinado Eliezer Kamenesky, saíram afinal da pena mercenária do nosso génio! Alerta, sôfregos descobridores de inéditos pessoanos, podem começar a salivar que vem aí mais material!

“O momento mágico” - revelou o biógrafo à entrevistadora, que lhe perguntara “Qual a fonte mais importante” para a sua quase-biografia - aconteceu no dia em que leu, no meu poema “Tabacaria”, o verso “Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz”. Então o ex-ministro pernambucano teve a sua epifania suprema: foi a correr à procura da lavadeira de Pessoa, Irene, que por sinal tinha uma filha, Guiomar, “por quem Pessoa se sentiu atraído”. Um pouco mais de coerência, senhor ex-ministro! Então o Fernando era homossexual e sentia-se assim “atraído” do pé prá mão, não só pela filha da lavadeira como pela Ofélia, a quem o Senhor seguidamente responsabiliza pela mudança da minha orientação sexual : diz mesmo que, a partir do namoro com Ofélia, “os textos do Álvaro de Campos vão-se transformando” e, mais radicalmente, “o engenheiro naval aparece casado, com a mulher ao lado a fazer tricô.” E justifica perante a entrevistadora os seus métodos investigatórios: “Quando você não conhece a vida dele não percebe estas ligações.” Desconfie desse seu saber, senhor ex-ministro: homossexual e bêbado sou eu, e com muita honra! – ou orgulho, como agora se diz. Está para nascer a pessoa que tenha visto o Fernando publicamente bêbado ou a namorar com um homem! Vai ter que fazer outro livro para apresentar essas provas!

O entrevistado biógrafo teve também, como o Fernando, o seu “dia triunfal”: esse em que conheceu a lavadeira e a filha de que eu falo em “Tabacaria” e concebeu a sua “quase autobiografia”, produto de incansáveis pesquisas, sobretudo encomendadas : ele até revela o nome de um dos pesquisadores: um tal Eleutério, historiador português, que andou anos à procura duma sapataria Contexto que o biógrafo (ou um dos seus funcionários) encontrou referida em letra impressa, talvez num recibo, ele não diz onde mas afirma ser seguramente fornecedora do Fernando. O historiador a soldo não encontrou rasto dessa importante sapataria mas o biógrafo tinha uma fezada que ela tinha que existir na Baixa, porque o janota do nosso Poeta, afirma ele, nunca se calçaria “na periferia. Só na zona mais cara”. E, ao cabo de grandes trabalhos, não é que o historiador acabou por descobrir – ou não fosse esse Eleutério descendente duma raça de descobridores! – que existira nos anos 20 uma sapataria na Baixa, sim senhor, chamada Contente! E quem exultou de contente foi o biógrafo que nos assegura que Contexto era gralha, o nome da sapataria só poderia mesmo ser Contente! Confesso que esta noite não vou dormir a tentar lembrar-me se a sapataria onde o Pessoa elegantemente se calçava era Contente ou Contexto. É que, sem isso, como afirma o biógrafo, nunca chegaremos ao entendimento da sua obra! - à revelação do “testamento” que a obra pessoana constitui e “que esperou 70 anos” “que alguém a desvende”. Salvé, senhor ex-ministro da Justiça, que com estas iluminantes revelações vai finalmente fazer jus ao génio do Fernando!

Com igual rigor investigatório e interpretativo, diz o autor da biografia (quase) que eu me chamo Álvaro de Campos porque o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Agora sou eu que me vou pôr a investigar sobre algo de tão importante para a minha identidade: com quantos Campos, além do engraxador, do moço dos recados e do criado de café, lidava quotidianamente o Fernando.

Peço a quem me ler, e tiver alguma informação a este respeito, que faça o obséquio de ma comunicar, que eu não tenho posses para pagar a informadores.

A determinação do nome e sítio exacto da tabacaria inspiradora do meu poema homónimo também fez perder bastante tempo, e sobretudo dinheiro, ao escrupuloso biógrafo que confessa o seu fracasso: nada apurou. Mas afirma a pés juntos que ela ficaria com certeza em frente da “mansarda da casa Moitinho, onde ele fazia serviços de correspondente estrangeiro”. Onde foi ele buscar essa da “mansarda Moitinho”? Outra epifania? Ou será porque eu afirmo nesse meu poema “sou e serei sempre o da mansarda”? Quem o manda levar demasiado a sério as minhas metáforas, sr. ex-ministro?
Mas tenho que reconhecer que deu a ganhar a muita gente: até reuniu uma junta médica para saber de que moléstia morreu o Fernando! “Eu criei uma junta médica. Fiz um calhamaço com todos os textos em que ele falava das dores e doenças e reuni os professores de Medicina mais importantes da minha terra, para sessões aos sábados na minha casa. Foram reuniões mastodônticas, examinando e discutindo toda a documentação. Até que se chegou à conclusão mais plausível de que Pessoa morreu de pancreatite”. Oh Senhor ex-ministro! a essa conclusão chegou há dezassete anos, sozinho, um médico da nossa praça, Francisco Manuel Fonseca Ferreira, que até a publicou em livro (Fernando Pessoa (A penumbra do génio), Livros Horizonte, 1995) – sem precisar para isso de “reuniões mastodônticas”.

Este livro põe-nos perante uma inovadora orientação da ciência médica aplicada a escritores, uma nova forma de autopsiar cadáveres ausentes. Olhe, e já agora, reúna de novo a sua junta médica e pergunte-lhe se pode sofrer de delirium tremens ( que o senhor diagnostica no Fernando) alguém com aquela letra tão certinha como era a dele quando se apurava. Leve-lhes, por exemplo, o requerimento com que ele se candidatou, em 1932, ao lugar de conservador-biliotecário do Museu Conde Castro Guimarães (esse a que o Senhor se refere, chamando-lhe “Museu de Cascais” – por favor, não abandalhe a nobre instituição, que ainda existe!).

Além disso, fiquei a saber, através desta entrevista, que o biógrafo conseguiu acesso a duas cartas da Ofélia “censuradas”, diz ele, isto é, não publicadas pela sobrinha do Fernando, sua proprietária, na esperança de encontrar uma revelação importante : “um aborto, por exemplo”. Oh Senhor Dr. ex-ministro: então diz que o Fernando morreu virgem (“Ele nunca teve mulher ou homem”) e admite que tenha engravidado a Ofélia? Por obra e graça do Espírito Santo, não? Só lhe falta admitir que por intervenção minha!

Mas oh! decepção suprema! o “assunto delicado” que farejava tinha apenas a ver com uma passagem (é a interpretação, errada, do biógrafo) em que a Ofélia conta que “tinha passado mal a noite com aquela “doença mensal” das mulheres”. E o nosso consciencioso biógrafo, que ia à espera de aparar um aborto, teve que se contentar com uns reles pensos higiénicos. Confessa: “Eu quase me mato…” Também não era caso para tanto, Senhor ex-Ministro… Um investigador-biógrafo tem que estar preparado para estas sórdidas surpresas…

Ah! tenho que ser sincero: aprendi uma coisa que não sabia: que o vaidoso do Fernando tinha “receita médica de 12 dioptrias mas usava óculos de 3 para não ficar com os olhos pequenos por causa das lentes grossas, e por isso aceitava ver tudo desfocado ao longe.”

Oh Fernando! só agora percebo porque é que você nunca me acenava quando eu vinha do Rossio, no início da Rua Augusta, e você aparecia emoldurado pelo Arco!

Mas olhe, senhor ex-ministro, coleccionador confesso de relíquias pessoanas: tem a certeza que esses óculos todos que lhe venderam como sendo do Fernando eram mesmo dele? Olhe que esse informador alfarrabista que comprou a loja ao Eliezer, e o pôs ao corrente das sestas alcoólicas que o Fernando lá fazia, teve à venda nesse seu estabelecimento, nos anos oitenta, óculos do Fernando, que eu bem me lembro. Mas creio que também uma bengala dele, e eu juro e trejuro que o Fernando nunca usou bengala nenhuma!

Fiquei impressionadíssimo com outra estória que o biógrafo narra, no livro e na entrevista em questão. Diz ele que a Ofélia contou a um jornalista da Globo que nada escreveu sobre isso nos jornais (rara discrição num jornalista!) mas relatou “como por destino” ao biógrafo (que, para isso, se sente messianicamente eleito pelo Destino!) que, quando o Fernando morreu, passou “toda a noite segurando a mão dele, já morto, no hospital, falando de tudo o que tinha ficado por dizer.” Esta estória – de “um romantismo incrível”, diz o biógrafo - já foi referida, citando precisamente a sua biografia, num congresso recente em que os sobrinhos do Fernando, por acaso presentes, lhe denunciaram a ficcionalidade: o Fernando foi assistido até aos seus últimos momentos, no hospital São Luís, pelo primo médico Jaime Neves que, mesmo que não fosse primo, não ia permitir que alguém ficasse toda a noite, “até ao nascer do dia”, a namorar com um cadáver. Essa gótica prática seria, admito, “de um romantismo incrível” mas, convenhamos, pouco corrente nos nossos prosaicos hospitais.

Agora confesso que estou em pulgas e me vou precipitar sobre o livro para saber a explicação do biógrafo para a razão pela qual o Fernando “tinha vergonha do próprio corpo e qualquer relação não seria nunca consumada.” O ex-ministro não a quis revelar, disse que a mulher o proibira determinantemente de falar disso nas entrevistas. Mas que está no livro. Será que o tal jornalista da Globo ou os investigadores a soldo do biógrafo falaram com alguém que tivesse visto o que, supunha eu, só a Mãe do Fernando contemplara, e apenas na sua primeira infância? O biógrafo ex-ministro tem que me ficar agradecido pela publicidade – e de borla! – que lhe estou a fazer ao livro! Pode ter a certeza que com esta revelação vai meio mundo precipitar-se para o comprar! As pessoas hoje em dia só compram este tipo de obras, em que o autor espreita alguém ou alguens pelo buraco da fechadura – de preferência, em pêlo!

Mas tenho que lhe fazer justiça, senhor ex-ministro desse ramo: tem que amar obsessivamente o Fernando para levar a vida a comprar “tudo” dele (“Eu tenho tudo!”, gabou-se à entrevistadora), até a sua colecção de selos, “os óculos que usava” (lembre-se do que a esse respeito lhe disse há pouco!), “a biblioteca pessoal dele” (então a da Casa Pessoa é imitação?). E eu amo quem ama o Fernando. Por isso, dê cá um abraço e continue a coleccionar “tudo”, objectos e informações sobre ele e os seus arredores, nos quais resido. Prometo que se comprar a Arca, como diz ter intenção, para a doar à Casa Pessoa, eu até lhe confidencio uma porção de coisas que mais ninguém sabe para o seu próximo livro! Faça isso, senhor ex-ministro da Justiça, com o que dará uma justa bofetada ao Estado português, que não comprou, no último leilão dos pertences do Fernando, esse símbolo da nossa identidade nacional, adquirido por um particular, aliás por um preço irrisório. E pensar que, com o dinheiro que foi e continua a ir buscar aos nossos bolsos para pagar os roubos feitos no BPN pelos parceiros e vizinhos do nosso Presidente, o Estado compraria essa arca milhões de vezes!

Prometo que me vou avidamente precipitar sobre o seu livro. Se o senhor entretanto comprar a arca, quem sabe se eu até vou escrever que saber o nome da sapataria onde o Fernando se calçava, e da rua da tabacaria que me inspirou e da lavadeira Irene e sua filha Guiomar é perfeitamente indispensável para entender a nossa obra – nossa, sim, que detenho um razoável número de quotas nessa empresa.

sábado, 5 de maio de 2012

«Fernando Pessoa, Filosofia, Religião e Ciências do Psiquismo Humano» Convite

Convidamos todos a estarem presentes na 8º sessão do ciclo de conferências «Fernando Pessoa, Filosofia, Religião e  Ciências do Psiquismo Humano» que contará com uma palestra conjunta do sobrinho de Fernando Pessoa Dr. Luiz Miguel Roza Dias e da Dra. Maria do Sameiro Barroso. A palestra será subordinada ao seguinte tema:

- "Fernando Pessoa e os paradigmas da normalidade, memória, testemunho e contexto".


A moderação do debate estará a cargo da Professora Teresa Rita Lopes.

A sessão terá lugar na Casa Fernando Pessoa, no dia 9 de Maio, pelas 18h30.

Organização: Paulo Borges, Nuno Ribeiro e Cláudia Souza
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