Instituto de Estudos sobre o Modernismo

Instituto de Estudos sobre o Modernismo

domingo, 17 de junho de 2012

O COLECCIONADOR CONTRA OS ESPECIALISTAS

Teresa Rita Lopes

Numa coisa estamos perfeitamente de acordo, o Dr. Cavalcanti Filho – autor da biografia pessoana em causa, a quem vou passar a chamar B., como é uso nos jornais, para poupar espaço – e eu, a dama dos “cabelos vermelhos”, como B. me descreve, acrescentando a lisonjeira censura de que eu uso uma “linguagem pouco académica, juvenil quase”: não queremos, ambos, perder mais tempo com isto -  ele, por não ter visivelmente argumentos, como a sua resposta ao DN, de 2 de Junho, claramente mostra, eu, porque criticar um livro em que os erros pululam em cada página – e são mais de 700! – é como matar à palmada uma nuvem de mosquitos. O Álvaro de Campos diz-me que também já tem a sua conta.
Todas as críticas que tenho feito ao livro de B. poderiam ter sido escritas há mais de um ano, quando recebi a edição brasileira, cortesia do autor. Mas não quis hostilizar um concidadão da “pátria língua portuguesa”, com que Pessoa sonhava pensando sobretudo no Brasil – até assim se chama um blogue do meu grupo de estudos pessoanos – onde têm sido publicadas as minhas críticas “ortónimas” e as que tenho atribuído ao Álvaro de Campos, heterónimo que, há muito, peço emprestado ao Pessoa para variadas militâncias pessoanas ( http://www.patrialinguaportuguesaiemo.blogspot.com/ ) . Ortonimamente assinei a que foi publicada no Público, a 25 de Maio, e as que exprimi em entrevista à jornalista do DN, Joana Emídio Marques, a 26 – às quais o B. responde a 2 de Junho e eu, por meu turno, vou reagir. Como não teria paciência para criticar, na minha própria pessoa, as centenas de dislates que o livro veicula, tenho dividido a tarefa com o Campos. E essa tarefa impôs-se-me, só agora, com a edição portuguesa, perante a aparatosa divulgação que dela tem sido feita, com oferta de 650 exemplares às escolas de um livro que está – peso o que digo – impróprio para consumo. Já o provei longamente em críticas já feitas, consultáveis no blogue citado, não teria para elas espaço neste artigo.    
Começa B. por dizer que é “um livro para não iniciados” o seu. Esse o risco. Os “iniciados” dão-se imediatamente conta das suas falsidades e confusões de toda a espécie. Riem-se ou indignam-se. É com os incautos não vacinados que eu me preocupo. Com os que ouvem falar de Pessoa, tanto, e deste livro também, e se precipitam para o comprar. Mas sobretudo, ah sim! preocupam-me os meninos das escolas, que têm todos Pessoa nos programas e recebem de bandeja a “bíblia” – editado pela Editora dos seus  manuais escolares – que lhes vai abrir as portas da passagem nos exames. 
Diz o B. que da obra não fala (antes não falasse mas fala, infelizmente fala, e de que maneira!): “tentei mostrar o homem”. E mostra esse “pobre homem” (p.623), louco (“esquizóide”etc, segue-se o diagnóstico completo p.621), com amigos “da rua”, o bêbado (“é cada vez mais comum vê-lo bêbado” p.636), homossexual não assumido, impotente por ter sido mal dotado pela natureza (afirmação frequente), esse visionário pretensioso (“aos poucos vai tendo visões grandiosas”, p. 538), pelintra mas vaidoso, veste-se e calça-se nas lojas caras e ostenta anel de brasão. E usa lentes com menos dioptrias “por vaidade” (não há pachorra para continuar a discutir dioptrias!). Ah! e sonha com o prémio Nobel (é uma obsessão do B.). Se este retrato fosse verdadeiro, era, paciência. Embora eu acrescente que escrever um livro sobre essa “verdade”, sem ligar à obra, como diz ter feito, não interessaria. Mas a verdade é que é mentira. Já antes o provámos, eu e o Campos, mas tenho, nas minhas notas, inéditas, muitos disparates por denunciar! Diz B. que escreveu o livro que queria ler e não existia. Proveito lhe faça! Guarde-o para si, não partilhe com os outros as suas perversas fantasias (porque identificar-se com esse “pobre homem”, de “triste figura”, podre de vícios e de defeitos, de forma a dizer que escreveu uma “quase autobiografia”, que outra coisa pode ser?).
Mas que diz de novo esse livro que era preciso existir? As inverdades que já denunciei e outras para que não tenho hoje aqui espaço (como o Pessoa e a Mãe serem ateus, ele quase não ter tido contacto com o Pai). Que o P. tinha um pénis diminuto era o A.Botto que dizia, despeitado porque o P. nunca lhe deu trela. Ah! mas revela os nomes da lavadeira Irene e sua filha Guiomar, e que Pessoa esteve para casar com esta última! (E as provas?) E o que já sabíamos há 17 anos, escrito em livro que B. não nomeia: que Pessoa morreu de pancreatite aguda (o delirium tremens revelado é falso). E que P. se abastecia numa sapataria cara que ou se chamava Contexto ou Contente. E que Ophelia velou, às escondidas, o corpo de Pessoa. Também que dos 55 indigentes poemas publicados em Alma Errante, de Eliezer Kamenezky, 37, ao menos, são de P.!  
Quanto aos “Heterónimos” (de que, afirma, Kamenezky passa a ser mais um!), capítulo de que tanto se tem ufanado, perante as críticas que eu e o Campos lhe fizemos já diz que não tem importância, que o Pessoa no final da vida decidiu abandoná-los a todos e escrever só um “livro grande”, por ele assinado – para assim ganhar o Nobel…Várias falsidades numa só afirmação, e todas porque o B. não entende o que P. escreve aos discípulos da revista presença sobre os seus planos, nem a sua ironia sobre o Nobel. (Quem não entende o que P. diz, como pode fazer-lhe a biografia?) Como pode o B. ignorar que P. escreveu em nome de Campos, Reis e Soares até aos seus últimos dias?
Diz ainda que o deturpo porque verdadeiros heterónimos são só (!) 127, os outros não trazem número mas só asterisco – mas contam todos para o resultado final: “somaria 207 nomes” (p.396, é o B. quem faz as contas!). Ah! e diz que usou o critério da “eminente professora Teresa Rita Lopes, em seu livro fundamental, a todos os estudiosos, Pessoa por Conhecer”.  Se o B. não atina com o sentido do que P. escreveu, como esperar que entenda o que eu escrevi – isto é, que as “personalidades literárias” que recenseei , 69, mais os 3 verdadeiros heterónimos (só 3, Pessoa frisou) são os que assinaram um texto literário. O B. pôs na sua lista 127 “verdadeiros heterónimos”, diz, mais 75 assim-assim, mais 4, segundo vários autores (que ele também não percebeu o que queriam dizer): António Botto, D. Sebastião, Sá-Carneiro, Ofélia Queirós (“anti-heterónimo”)! E acrescenta que “nestes cálculos deveria também estar Elieser Kamenesky” (p.395)!
Quanto à existência real do Padre Matos e José Pacheco é tal a baralhada que estabelece, neste artigo como no livro, que remeto para o que já a esse respeito disse,
não tendo aqui espaço para o fazer. Reparemos só que um dos seus fortes argumentos, no DN, a favor do poema de José Coelho Pacheco ser de Pessoa, é “o facto de falar, o poema, de rebanhos de ovelhas – semelhantes aos do Guardador, de Caeiro.” O B. acrescenta outras pérolas, que não cabem neste cofre. Desminto ainda a afirmação gravemente falsa de que P. se aproveitou “numerosíssimas vezes” do nome dos amigos “para os nomear seus heterónimos”. Sim, o B. contabiliza alguns na tal lista mas por sua disparatada iniciativa.   
 A tese do B. é, afinal, que sabe mais coisas que os “especialistas” porque tem documentos que eles não conhecem. Terá que os dar a conhecer, se quiser que o creiam! Diz que “teve em mãos o dito jornalzinho, escrito pelo próprio Pessoa”, em 1902. Só podia ser A Palavra (que reproduzi em Pessoa por Conhecer). Diz ainda que tem “uma diferença com os especialistas, em Portugal. Que nenhum destes jamais teve curiosidade em saber de que tratavam as duas cartas de Ofélia”, que a família desta não permitiu fossem publicadas pela sobrinha de Pessoa, ao editar essa correspondência. (Por acaso, tenho fotos de todas – que a irmã de Pessoa me permitiu tirasse!) Afinal, re-confessa (já o dissera ao semanário Sol) não encontrou lá notícia do “aborto” que, estranhamente (dadas as incapacidades que atribui a Pessoa) aí esperava encontrar, mas apenas da “doença mensal” das senhoras! Ai estes “especialistas” que, sem posses para comprar as ditas cartas, ficaram sem saber que a Ophelia tinha a tal “doença mensal”! Quanto ao livro que a Ophelia trouxe das mãos do Pessoa já cadáver, na posse do B., só prova que alguém o obteve e lho deu ou vendeu. Mas como o adquiriu? O Richard Zenith vai contar essa estória noutro sítio…
O cerne do problema é que o B. pensa que ter comprado todos esses pertences do Pessoa (ou a ele atribuídos) lhe dá a autoridade de saber mais sobre ele que os pelintras dos investigadores, sem poder de compra para os coleccionar, obrigados a contentar-se com o Espólio pessoano da Biblioteca Nacional! Se assim fosse, teria que revelar esses preciosos documentos, Sr. B.! Pela minha parte, e como homenagem à irmã de Pessoa, Henriqueta Madalena Caetano Dias, lembro que frequentei o Espólio ainda em sua casa, e outros mini-espólios ainda nas mãos dos seus possuidores (os tais jornalecos A Palavra, feitos à mão pelo jovem Pessoa de 1902, na casa do primo Eduardo Freitas da Costa – onde não havia, não senhor, nenhum “Padre Matos!) que reproduzi no Pessoa por Conhecer, citado pelo B., e também nos catálogos de 2 exposições que organizei, itinerantes em Espanha e no Brasil, censuradas em Portugal…mas isso é já outra estória!). Se o B. possui documentos que desconheço, porque não colecciono, só investigo, gratíssima lhe ficarei se os der a conhecer, e pode estar certo que o citarei, coisa que ele não faz com as fontes em que se abebera.
Os argumentos com que o B. rebate as críticas feitas ao seu livro, que ocupam as primeiras duas colunas do artigo no DN, são uma lista dos êxitos por ele obtidos no Brasil, nos jornais e na net (tudo ali bem contabilizado!) e também dos prémios concedidos. (Isso prova, sobretudo, o apreço que os brasileiros têm por P. – e também talvez outras coisas menos bonitas de que não seria bonito falar…)“Já em Portugal” diz ele, “a do público, a quem o livro se dirigia, muito boa”. O problema é com “os especialistas”, a quem o livro se não dirige…E a esses tenta arrumá-los com o seu título de membro da Comissão da Verdade, nomeado “pela Presidenta da República”, para “reescrever a história do país, nos anos de chumbo, recentes…”. Faço votos de que se desempenhe dessas funções com maior fidelidade à Verdade do que a praticada nesta biografia de Pessoa.

Publicado no Diário de Notícias
16.06.2012