Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

“Dá-me rosas, rosas / E lírios também” - Teresa Rita Lopes


“Dá-me rosas, rosas / E lírios também”

A relação de Pessoa com a Natureza, em geral, e com as flores, em particular, dá que pensar. Sobre a Natureza, já o fiz mas sobre as flores, em particular, estou a fazê-lo pela primeira vez. E com muito regalo.
Talvez porque a primeira paisagem que o dimensionou foi o Largo de São Carlos, onde nasceu e cresceu e com certeza brincou até aos cinco anos, Pessoa é um inveterado citadino. No triciclo em que o vemos montado, numa das suas fotografias de menino, terá feito, nesse amplo largo, marcantes viagens.
Viveu mais dois anos em frente de outra paisagem urbana, na Rua de São Marçal, para onde a família se mudou depois da morte do Pai – já sem largueza para expandir as suas brincadeiras, só uma rua para atravessar.
A ida para Durban deve ter constituído um terrível choque para esse menino habituado a ver uma cidade bonita da sua janela, com o debrum azul do rio, ao fundo - a que só deve ter dado o devido valor quando desembarcou nessa feia povoação recente, de pioneiros, pouco mais que quatro ruas improvisadas. A sua capacidade de se isolar e viver num sítio imaginado deve ter começado então. Era para a pátria-língua-inglesa, borbulhante de cultura, que o remetiam as fecundas leituras, no liceu de Durban, que deixou fama de ter um alto nível, e as que incansavelmente fazia, a sós consigo, na casa familiar. Aí se instalou, nessa Inglaterra mítica, e aí foi relativamente feliz o “português à inglesa” que mais tarde, num poema, declarou ser.
A irmã contou que, para ir para a escola, atravessavam uma mata donde saltavam macacos que a apavoravam. Também o Fernando devia estremecer de medo perante essa natureza tropical, plena de imprevistos e sobressaltos.
Mais tarde – em 1923 – Pessoa confessará numa carta a um amigo que o convidara a ir passar algum tempo consigo, na casa de campo de seus pais, que tinha “a alma insuficientemente panorâmica” e que estava “fincado em Lisboa senão como uma árvore pelo menos como um poste”. E até acrescentava, em nítida contradição com o seu Alberto Caeiro, que “há rios tão estúpidos que parecem gente”.
De facto, Caeiro refere a sua “raiz, relação directa com a terra” – de cuja ausência o eterno deambulante Álvaro de Campos se queixa. Pessoa, na sua própria pessoa, considera negativa, num poema de Mensagem, “a lição da raiz”:

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz
ter por vida a sepultura.

Mas precisamente porque sente falta de uma “relação directa com a terra” é que Pessoa criou esse que Campos denominou “Espírito humano da terra materna”, Alberto Caeiro.
Ao contrário dos “outros” pessoanos, nitidamente urbanos, Caeiro, apesar de ter nascido em Lisboa, instala-se no campo, e aí enuncia os seus preceitos para uma arte de viver sem dor e de morrer em paz, como o dia morre. Ele próprio se diz um “intérprete da Natureza” (GR, XXXI) – o que quer dizer o contrário do que parece: Caeiro não a interpreta para lhe atribuir sentido mas para afirmar que, ao contrário do que os poetas pretendem, as coisas da Natureza não têm “sentido oculto” nenhum, são só o que ali está.
No meu recente passeio pela obra de Caeiro para reparar nas flores que por lá há, verifiquei que são aí uma presença constante, mas nem sempre com a mesma função.
Em geral, não lhe dá nomes: chama-lhe apenas flores. Num verso, declara “Não há rosas no meu quintal” (CAEIRO, Alberto. Poesia. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.p.157) talvez para bem vincar que as não cultiva e que só se interessa pela “flores que há nos campos”. Do seu poeta modelo, Cesário Verde, diz que “o modo como olhava” para as casas, ruas, pessoas era o de quem “anda a reparar nas flores que há pelos campos” (Ibidem, GR III). Dir-se-ia que é essa também a sua maneira de olhar para o mundo.
Distanciando-se dessas “pobres flores”, como lhes chama, “nos canteiros dos jardins regulares” (Ibidem, GR XXXIII), fala das flores à solta, nos campos por onde passeia, e diz “esta flor”( Ibidem, p. 116), como quem a colhe e a contempla entre os dedos. Esse “intérprete da Natureza” - que faz as vezes de um verdadeiro oficiante, incutindo a arte mimética de nos parecermos com essa Natureza que apenas se cumpre e nunca pensa - desenvolve, a partir da contemplação da flor, os seus ensinamentos e até, às vezes, o que poderemos chamar as suas parábolas.
Assim anuncia: “Creio no mundo como num malmequer, porque o vejo.” (Ibidem, GR II) Curiosamente, só dá nome específico ao malmequer e ao girassol. Quando se apaixona, confessa: “Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.” Os seus olhos adoecidos pela paixão deixam de “ver, apenas ver” o que está diante deles para serem olhados por ela, obsessivamente presente na realidade que o rodeia, que um voluptuoso pesadelo transforma num girassol gigante.
Mas quando está de boa saúde, apenas fala de simples flores. E para proclamar a ausência de “sentido oculto” das coisas do mundo – que, segundo a concepção cristista, existiriam para cantar a glória de Deus – Caeiro afirma “as flores não são senão flores” (Ibidem, GR XXIV), “Eu amo as flores por serem flores, directamente” (p. 144), não por fazerem lembrar isto ou aquilo nem sequer por serem belas. Além disso, são desprovidas de utilidade, sem outra serventia que existirem, simplesmente. É assim que no VIII º poema do Guardador de Rebanhos diz que o Menino Jesus (que identifica com a sua “vida de poeta”) “colhe as flores e gosta delas e esquece-as” e “arranca flores para as deitar fora” (Ibidem, p.37).
Também faz questão de acentuar que não estabelece com as flores qualquer parentesco sentimental, o que seria coisa dos “poetas místicos” que ridiculariza: “Os poetas místicos dizem que as flores sentem” (Ibidem, GRXXVIII) mas “as flores não são senão flores”, repisa, noutro poema (Ibidem, pp. 58 e 62) porque, como acentua, “A Natureza não tem dentro”. Por isso insiste: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido” (Ibidem, GR IX)
E afirma, claramente: “Para quê me comparar com uma flor, / Se eu sou eu / E a flor é uma flor?” (Ibidem, p.146)
Mas a verdade é que se compara.
“Penso e escrevo como as flores têm cor” diz, embora “me falte a simplicidade divina de ser só o meu exterior” (Ibidem, GR XIV).
As flores são, pois, divinas, manifestações de um deus que não há (Ibidem, p.31): “Só a Natureza é divina mas ela não é divina”: com esta aparente contradição quer ele dizer que essa divindade da Natureza não implica transcendência, como na religião cristista, cuja crítica subjaz permanentemente em tudo o que afirma e nega, embora a tenha sempre como ponto de referência.
Assim não deixa de dizer das plantas que são “santas”: “as minhas irmãs, as plantas, / As companheiras das fontes, as santas / A quem ninguém reza” (Ibidem, p.47?)
Deixa entender que escreve com a mesma espontaneidade com que a planta dá flor (XLVIII). E compara os seus versos a flores, dizendo que: “não podem ser belos e ficar por imprimir, / Porque as raízes podem estar debaixo da terra / Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.” (Ibidem, p.107)
Alberto Caeiro aparece-nos assim como uma espécie de xamã, exercendo as suas terapias sem teorias nem espiritualismos, sem necessitar de recorrer à transcendência, permanecendo apenas no rés-do-chão da Natureza, dando às coisas o perfeito sentido de não terem “sentido oculto nenhum” – de nada significarem nem simbolizarem. Ao Pessoa que afirma, em diversos textos, pela própria boca ou pela dos seus outros que “tudo é símbolo e analogia” (Fausto), Caeiro responde que “as coisas não têm significação, têm existência”.
É contudo preciso lembrar que as flores de que Caeiro fala, em geral, são apenas “maneiras de dizer” (como diz da Primavera), apenas apercebidas com a vista ou apenas pensadas.
Pessoa não devia perceber nada de flores nem ter, com elas, mais do que uma experiência literária. Escreve: “O cheiro que os crisântemos teriam se o tivessem”. Ora acontece que os crisântemos têm mesmo cheiro e até com ele se confeccionam perfumes.
Só quando se apaixona, Caeiro se relaciona sensualmente com as flores através do cheiro: “Agora que sinto amor / Tenho interesse nos perfumes. / Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. […] Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.” Nos poemas da série “O Guardador de Rebanhos”, as flores, frequentemente nomeadas, eram só para vista. Nos do “Pastor Amoroso”, solicitam outros sentidos: o cheiro e o paladar. Num deles até diz: “acordo e cheiro antes de ver”. Curiosamente, nos últimos poemas “Inconjuntos”, quando se declara doente e a morte se aproxima, intervém o tacto (Ibidem, p.128-9) : “Sinto-me parte das cousas com o tacto” (Ibidem, p.129). É então que profundamente sente o que é ter “raiz, ligação directa com a terra, / E não esta espúria ligação do sentido secundário chamado a vista / A vista por onde me separo das cousas” (Ibidem, p.128). Como se vê, quando adoece para morrer, afirma o contrário do que anteriormente – contradição voluntária, porque quando está doente deve dizer o contrário do que quando está de boa saúde, como esclarece.
Noutro poema, de 20.4.1919, em que fecha os olhos e se deita na terra, estão presentes esses sentidos que habitualmente negligencia: a audição, o cheiro e o tacto (Ibidem, p.159) E só nessa altura fala de “gozo”: “Gozar uma flor é estar ao pé dela, inconscientemente”.
E diz aqui que ver anula o gozo. Deitado na erva, atento aos “ruídos indistintos das coisas a existir”, descreve a sua relação voluptuosa com “a dureza fresca da terra cheirosa e irregular”. Diria que este poema, em que Caeiro se relaciona através dos diferentes sentidos com “as coisas a existir”, é da série “O Pastor Amoroso”. (Também noutro poema, p.166, o surpreendemos no mesmo estado de espírito e corpo, deitado “ao comprido na erva”.)
Concluindo, as flores são, para Caeiro, exemplo dessa “simplicidade divina” que gostaria de ter: “Penso e escrevo como as flores têm cor/ mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me / Porque me falta a simplicidade divina / de ser só o meu exterior.” (Ibidem, p.47)
As flores são, portanto, como toda a Natureza, divinas, mas dessa “comum divindade” a a que Caeiro aspira, sem além, apenas ao rés da terra. Diz, num poema:

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio…
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.
(Ibidem, GR XXXVI)

Contrariamente ao que afirma noutros versos, as flores afinal comunicam uma “verdade” e dão um exemplo de vida de que ele partilha – por isso fala da “nossa comum divindade”. Curiosamente usa duas expressões próximas a respeito dele e das flores: “simplicidade divina” e “comum divindade”. E essa “verdade” que ele diz estar em ambos – “nelas e em mim” – tende a exprimir-se através das palavras. É afinal dessa mensagem que ele se faz “intérprete” – embora se dê conta da sua contradição e apelide essa função de “coisa odiosa”.
É como se sentisse esse “primeiro homem” - que menciona num poema - que viu pela primeira vez flores “e lhes tocou levemente / Para ver se elas falavam…” (Ibidem, GR XXXIII)
Como o tal “S. Francisco de Assis do Novo Paganismo” que foi feito ser, Caeiro fala de “As minhas irmãs as plantas” e diz que são “as primeiras verdes palavras que [a Terra-Mãe] tem / As primeiras coisas vivas e irisantes / Que Noé viu / Quando as águas desceram “ (Ibidem, GR XVII). 
Sem querer, à voz de Caeiro sobrepõe-se muitas vezes, como neste caso, a de Pessoa que busca em tudo “a frase silenciosa que contem”. Por isso é que Caeiro não faz mais, ao longo dos 49 poemas do Guardador de Rebanhos, que tentar ser o “intérprete” das “verdes palavras” da Natureza, balbuciadas pelas suas mais amáveis criaturas, as flores.
Só falei até aqui da relação com as flores do heterónimo que a elas se refere constantemente - e não há tempo para mais. Acrescentarei apenas que para cada heterónimo, a sua flor. O verso de que tirei o título para esta comunicação é de Pessoa/Campos (não entrarei aqui nos problemas da duvidosa atribuição): “Dá-me rosas, rosas / E lírios também, / Crisântemos, dálias, / Violetas, e os girassóis / Acima de todas as flores…”
Para o autor destes versos as flores são apenas um lenitivo para as dores da alma: “Deita-me às mancheias por cima da alma”, pede.  
É claro que Caeiro nunca diria uma coisa destas, até porque nunca se queixa das dores da alma, ele que tinha em mente “o corpo mais corpo que pode haver”. (Ibidem, p.154)
Prometi inicialmente dar a conhecer poemas meus inspirados pelas flores. Mas depois de ter indicado o título, que naturalmente me surgiu sob a forma desses versos de Pessoa, resolvi dar-lhe a palavra, e isso tenho estado a fazer. Para não faltar inteiramente ao prometido, vou oferecer um ramalhete de poemas recentes, que intitulei “A rosa de cada dia”.
* As referências à poesia de Alberto Caeiro foram retiradas do livro: CAEIRO, Alberto. Poesia. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Texto escrito pela Professora, Investigadora, Escritora e Poetisa Teresa Rita Lopes.