Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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sexta-feira, 13 de julho de 2012

GUERREIRO E CAVALCANTI


Teresa Rita Lopes


A 30 de Junho passado, o Expresso publicou uma crítica, de António Guerreiro, sobre a biografia pessoana de Cavalcanti Filho, que me nomeia. Invocando a Lei de Imprensa, respondi com o texto que segue, que a direcção desse jornal me propôs apenas publicar como "carta ao Director", e com um quarto dos caracteres, o que naturalmente recusei. O que pretendo não é polemicar com o crítico mas lançar alguma luz sobre a tão debatida questão da sexualidade pessoana, fulcro da crítica em questão - o que não seria possível no exíguo espaço concedido.



Guerreiro e Cavalcanti

(Observações a uma crítica que me nomeia)

Contaram-me que há um ditado em Pernambuco (terra natal do Dr Cavalcanti Filho) que reza: “ Cavalga se não queres ser cavalgado”. É isso que ele faz, com denodo, desde que rebentou esta discussão sobre o valor da sua biografia (“quase autobiografia”). Até à publicação, no Público, da crítica que este jornal me solicitou, nenhum crítico se tinha ainda pronunciado a valer: só aplausos soltos de quem – na melhor das hipóteses –  tinha  sobrevoado as 700 e tal páginas da obra. Só agora António Guerreiro vem botar palavra sobre o livro. Mas não só. Bem que podia não me ter metido ao barulho!  Mas já que o fez, e por respeito para com os leitores de jornais (espécie em vias de extinção), vou ter que denunciar a sem-razão de umas flechas que este Guerreiro me lançou, recusando-me, contudo, a entrar em combate. Sou pacifista e as minhas batalhas são outras: uma quotidiana militância contra a incultura reinante e galopante e os que a cultivam e propiciam. (E particularmente contra o fétido lamaçal em que os próprios (soi- disant) agentes da cultura patinham, à semelhança e por contaminação do que acontece sociopoliticamente falando.) Já me bastou ter que enfrentar, a pé, o Cavalcanti: ele tem hostes, fortuna, compadrios. Eu estou sozinha e desarmada – só com as minhas razões, obtidas através de uma vida de estudo. Sou um desarmado David, apenas com o recurso da funda e de alguma pedra ao alcance da mão, face a poderosos Golias. Mas, a cavalo ou a pé, a minha guerra não é a deles. Os investigadores científicos sabem que, para tudo investigar, ou quase tudo, sobre um certo macaco – só um exemplo - é necessário ir viver com ele umas dezenas de anos para a sua ilha, em dedicação exclusiva. Isto é válido para qualquer outro especialista. Para se escrever sobre um autor tão complexo que até é vários autores, tem que se ter com ele uma íntima lidação. Não basta saber por alto – ser generalista. (Que me perdoem os médicos generalistas, que muito prezo. É que me estava a lembrar da história de um homem que entrou numa igreja com uma nota na mão, e andou de altar em altar, com a evidente intenção de a depositar nalguma caixa de esmolas. Ao vê-lo sair, sem fazer a doação, o padre precipitou-se e perguntou-lhe quem buscava. “Santa Luzia, informou, por mor dos meus olhinhos. Mas não existe aqui…”. O padre não desarmou: “ Mas vá ali à Nossa senhora de Fátima que é de clínica geral!”). Como muito bem diz Guerreiro, “um boticário” não pode fazer “um tratado de Química”. No âmbito das literaturas, reina a prática da clínica geral. Toda a gente se sente capaz de botar discurso, oralmente ou por escrito, sobre qualquer coisa.
Guerreiro atira-me duas flechas: a primeira porque “ao contrário de Teresa Rita Lopes”acha que P. sai imune do retrato sórdido que dele é feito nessa biografia. Aos olhos dos conhecedores, sim. Mas preocupam-me os outros, sobretudos os estudantes que consultarem para os seus exames os 650 exemplares oferecidos às bibliotecas escolares.
E acaba o seu artigo dando-me voz, em itálico, para me responsabilizar  pelos “delírios biográficos de Cavalcanti Filho”: cita o “depoimento” que o biógrafo me atribui, quando me foi conhecer e visitar – ele que não cita os meus livros  - em que eu lhe teria dito que, “caso tivesse obtido o cargo de conservador em Cascais ( a que se candidatou em 1932), teria provavelmente casado com Ophelia, é possível que tivessem sido muito felizes e até provável não que tivessem tido muitos meninos, mas que tivesse vivido mais anos e escrito mais livros”.
O Crítico reage cada vez que Ophelia é nomeada (curiosamente como Álvaro de Campos, que também abominava a pobre rapariga). Biógrafo e Crítico têm, aliás, em comum, uma obsessão: Ophelia. Não sou dada, como o Crítico, à psicanálise, porque não estudei essa matéria, mas vou mesmo inventar, para o Biógrafo, o complexo da Carochinha: sempre que nos textos de Pessoa aparece uma mulher à janela, ou tão só a janela, tem que vir Ophelia à baila! Guerreiro ironiza, com toda a razão, sobre a declaração do Biógrafo de que certo poema que fala duma janela evoca Ophelia e Pessoa, “passando por baixo da sua janela”. G. podia também ter referido, a propósito da carta-conto de uma corcundinha, Maria José, “que passa os dias à janela, a chorar o seu infeliz destino”, a aproximação feita por B. entre  Ophelia, à janela, e o “Senhor António”, seu platónico amor, que era serralheiro e assim se chamava, está-se mesmo a ver, por causa do Fernando António…(pp. 376-7, da dita biografia. Diga-se, de passagem, que chegavam estas duas páginas, com vários outros dislates, para fazer corar de vergonha as pessoas que têm apoiado, directa ou indirectamente, este livro). Curiosamente, a crítica de G. organiza-se em torno do tema da sexualidade, que Pessoa declarou a Gaspar Simões, em carta de 11.12. 1931, pouco lhe interessar (a própria como a alheia). O que B. diagnostica como sintoma de homossexualidade, G. pretende ser sadomasoquismo, e insurge-se contra a “ignorância teórica” de B. “quanto à sexualidade”, em geral. Ophelia volta à berlinda: B. atribui-lhe o que G. chama uma “conversão virtuosa”: com a chegada dessa rapariga, ficam ambos curados da sua homossexualidade, Pessoa e Campos. (G. não perdoa essa “conversão” e também não as “coisas absolutamente ofensivas” que B. diz sobre António Botto, que teria dado a conhecer “o reduzido tamanho do membro viril do poeta”.) Nisto não meto o meu bedelho, deixo o assunto para os especialistas, só direi que não percebo por que razão G. se indigna tanto com o facto de eu ter dito (na tal conversa), meio a sério meio a brincar, que, se P. tivesse tido o tal emprego, até, quem sabe, se teria casado com a Ophelia - etc, etc.
Ora P., segundo afirmações escritas em cartas, até encarou casar-se com ela, sim senhor. Que mal há nisso – em dizê-lo e em fazê-lo?
 Noutra carta a G. Simões, de 18.11.1930, Pessoa diz algo que, parecendo contrariar o que afirma na carta anteriormente referida, explica as turbulências poéticas de Campos, que B. diagnostica como manifestações homossexuais e G. sadomasoquistas: consistindo algumas manifestações da libido “num certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes  [através dos poemas “Antinous” e “Ephitalamium”] eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente.”
Convém que não esqueçam, tanto o Biógrafo como o Crítico, que Pessoa era capaz de tudo viver, até a sua sexualidade, por interposta(s) pessoa(s).