Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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segunda-feira, 21 de maio de 2012

Campos manifesta-se sobre os seus 207 colegas heterônimos (127+75+5)

                          
 Carta psicografada por Teresa Rita Lopes

Prometi analisar com vagar, numa anterior comunicação, a “Quase autobiografia “ do Fernando, da autoria de José Paulo Cavalcanti Filho: aqui estou, contrariadamente, a cumprir a promessa. Mas imaginar esse livro a servir de manual aos nossos estudantes  – que têm todos Pessoa nos programas – causa-me tal calafrio que dou comigo a rapar da pena para essa inglória tarefa! É que o abnegado ex-ministro declarou publicamente estar disposto a abdicar dos seus direitos de autor para, com eles, porem nas mãos dos estudantes portugueses esse instrumento indispensável. (Lembra-nos outro político mas esse, ao menos, deu-lhes um objecto útil, um computador, enquanto que este devia ser retirado do mercado. Devíamos arranjar, para controlar estas situações, algo como a ASAE, que nos defende de alimentos impróprios para consumo.)
Vamos por partes – que o livro tem 700 e tal páginas !
Comecemos pelo assunto mais badalado: os 207 “heterônimos” que o autor se gaba de ter encontrado: 127,autênticos puro sangue, mais 75 que “embora não sejam considerados verdadeiros heterónimos”, não deixam de somar (é o Dr. que faz as contas) 202, a que acrescenta ainda “os cinco personagens reais” nomeados – “o que somaria 207 nomes” (´Cavalcanti dixit, p 396. Veja que também sei latim!)
 Oh Sr. Dr. em leis, coleccionador de “heterônimos”! O Sr., tão culto que abre os capítulos com epígrafes em latim, e que fala tanto de heterossexualidade e da nossa (minha e do Fernando) homossexualidade, não sabe que “hetero”, em grego, quer dizer “outro”,“diferente”?! Como é que o Sr. faz aparecer  “Fernando Pessoa”  como heterónimo de si próprio (é o n.º 44) ! E acrescenta mais dois à lista: “Fernando António” (nº 41) e “F. Nogueira Pessoa” (n.º37) ! Ah! ainda mais outro: Ferdinand Sumwan, n.º 40, (personagem de um drama de que já vou falar, “Ultimus Joculatorum”) que o Fernando explica, e o Sr. repete, ser ele próprio. Sugiro-lhe que some mais um: “Fernando Pessôa”, antes de ele ter retirado ao seu nome, em 1916, o acento circunflexo! Veja se percebe de uma vez por todas que o que o Sr. faz é coleccionar os nomes próprios que encontra nos textos do Fernando! Com este “critério de classificação” que, segundo diz (ibidem) usou, mas é coisa que o Sr. não tem, chegaria facilmente aos 500, incluindo Deus e a Virgem Maria e Cristo e Moisés e todas essas figuras bíblicas que o Fernando cita. Satanás já o Sr, lá meteu! (é o seu n.º 69).
Antes de empreender a sua lista, e o seu livro, o Sr. devia ter aprendido - o Fernando, na sua obra, matou-se a explicar - a diferença entre “heterónimo”, “personalidade literária” e “pseudónimo”. Heterónimos somos só três: eu, o Caeiro e o Reis – só através de nós “voa outro”, disse. Até o Bernardo Soares, que se fartou de escrever, não passa de “personalidade literária” ou “semi-heterónimo” – frisou o Fernando. É como se, das inúmeras sombras que ele projectou em seu redor, apenas três se tivessem soltado dos pés de quem as produziu. Só nós os três fomos à vida pelo nosso próprio pé, interagimos e escrevemos com nosso estilo próprio. Quem não perceber isto, não tem competência para abordar a obra pessoana. O Sr. não entende que não pode fazer emparceirar as nossas três pessoas e as nossas três obras (com que o Fernando, ao longo da vida, foi construindo o que chamou um “drama em gente”) com todos os nomes próprios em que tropeça nas nossas páginas?! Tudo o lhe vem à rede, é peixe! – isto é, “heterónimo”! O Sr. até dá esse estatuto a assinaturas casuais pescadas em livros e papéis soltos, algumas até riscadas! Fique sabendo que o Fernando estudava grafologia e se treinava a fazer assinaturas em tudo o que era papel: esse o caso de Jerome Gaveston, por exemplo, (seu “heterônimo” n.º 69) que nunca escreveu uma linha de prosa ou verso, de quem nada se sabe – o que é o caso de variados outros dos seus “heterônimos”.
E também não pode confundir heterónimo com pseudónimo, como faz constantemente, por exemplo a respeito de Tagus, (um concorrente , por sinal batoteiro, a prémios de charadas, num jornal de Durban), classificado como o 111º da sua lista - a quem  até o Sr. chama “pseudónimo dos tempos de Durban”. (Solucionava as charadas enviadas para o jornal por outro pseudónimo do esperto rapazinho, J.G.H.C. – como o Richard Zenith descobriu!). O pseudónimo é isto: uma máscara que encobre quem a usa, o heterónimo (invenção pessoana que o Sr. não pode malbaratar) revela o ser aos seus próprios olhos (“Fingir é conhecer-se”, disse Pessoa.)
Pseudónimos são também os seus “heterôninos” n.ºs 115 e 116: “Um Irregular do Transepto” (sob o qual escreve, em Janeiro de 1934, ao jornal católico A Voz, já sobre a Maçonaria) e “Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência”, que assina poemas panfletários contra Salazar, em 1935.
Pseudónimos de charadistas abastecem a sua lista com dúzias de “heterônimos” - que não são mais que ocasionais colaboradores dos jornalecos que o Fernando fabricava com um entusiasmo infantil que durou para lá do admissível (reúna de novo a junta médica, que contratou para fazer a autópsia do Fernando, para lhe avaliar este atraso mental). Até a “Lili”, “boneca de louça da irmã Teca”, que “escreve incompreensíveis charadas para um desses jornais infantis, A Palavra”, recebe um nº, o 77, na sua lista!
(Mas que orgulhosa que a Lili deve estar de passar à posteridade como “heterónimo”, num livro imorredoiro!) Noutro, O Palrador, que o Fernando continuou a compor depois do regresso a Lisboa, em 1905 (brincar aos jornalistas com mais de 17 anos é mais que razão para a tal junta médica!) também lhe fornece nomes em barda, até um nomeado “Trapalhão” (longe de mim estar a fazer-lhe qualquer insinuação!).
Outra habilidade sua é confundir heterónimo com personagem de ficção – que não escreve, esta, é escrita! não é autor, é assunto! Fausto é a personagem central do drama com esse título! Marino, idem, idem! Marcos Alves, a mesma coisa: neste caso, de uma narrativa. Abílio Fernandes Quaresma, seu n.º 4, é o mesmo caso, e ainda por cima conta duas vezes na sua lista, assim e como “Quaresma decifrador”. Outro decifrador  desses contos “policiários” com que o Fernando se regalava, , é o ex-sergeant William Byng (até adiante lhe foge a boca para a verdade e lhe chama “personagem”!). O “Tio Porco” (com sua licença!), que contracena com Quaresma, é a mesma coisa!  O “Autor da Carta da Argentina”, assim  chamado por si, na lista, é também a personagem de um conto em forma de carta, que se exprime na primeira pessoa! O “Cego”, também por si assim denominado, (n.º 25) , limita-se a entoar umas quadras de inspiração sebastianista-sidonista, depois das quais nunca mais apareceu! Se pegar em todas as personagens que, em poemas, se exprimem na 1.ª pessoa, duplica a sua lista: Olhe, o D.Sebastião, da Mensagem, que exclama: “Louco, sim, louco porque quis grandeza”! Será por isso que também acaba por admiti-lo como “heterônimo”?
Personagem é igualmente Jacob Dermot, nome filado numa página de diário (atenção, não é de 1900, como escreve, mas de 1906!) em que o Fernando confessa:”Dificuldades na execução mental de Jacob Dermot”. O Sr. até adopta como heterónimos personagens de livros alheios: é o que nos diz (p.378): Martin Hewitt, da obra de Arthur Morrisson (não Morrinson, como escreve!) : As Aventuras de Martin Hewitt, investigador (1896).
Também às personagens de um drama, Ultimus Joculatorum, o Sr. confere estatuto de heterónimo: Caesar Seek , n.º 20( não Seerk!); Jacob Satan (n.º 66), a propósito da qual atribui ao Fernando uma grosseria que ele não cometeu: diz que ele definiu J.Satan como “um espírito de M.”, abreviatura pudica para “merda”. Oh Sr. Dr. ! O que o Fernando escreveu, e em inglês, foi “a spirit of ill”! E o Sr. acrescenta: “Mestre de ternura”, saltando duas linhas desse texto pessoano, entre “mestre” (master” ) e “of tenderness”! Isso da ternura refere-se a “uma mulher”, que vem a seguir, a que até encarou chamar Magdalena, mas depois riscou. Que trapalhada! Outra personagem desta peça, a que o Fernando hesita chamar “Erasmus(?) ou Dare(?)” , rende dois lugares na sua lista! Vê-se bem que o Sr. sabe fazer render o capital – como não, se trabalha para o Banco Mundial (é o que apregoa na badana do livro)!
E ainda por cima abastece a sua lista com nomes que viu num livro do holandês Stoker, sem saber sequer a que correspondem: limita-se a dizer: “Mais um nome indicado por Stoker”, como um tal Major Bastos, a que acrescenta este esclarecimento iluminante: “segundo quem (o tal Stoker) parece ser pessoa reservada para assinar textos”. E a seguir, cedendo ao seu permanente tique coleccionista em relação aos  nomes próprios, deriva para outros Bastos, incluindo “um senhor Bastos que está em texto de propaganda que fez para as Tintas Berryloid”. (Oh Sr. Coleccionador de nomes!!! ) Com o habitual esclarecimento (“Mais um nome indicado por Stoker”!) nos aparece uma Maria Aurélia Antunes, um Álvaro Eanes, um Antony Harris, um Augustus West, um Aurélio Biana (devia ser do Norte!), um Darm Mouth, um Fr. de Castro, um Francis Neasden, um Frederico Barbarossa, um Isaías Costa,  um Jacinto Freire – e não tenho pachorra para continuar a enumerar!
Outro dislate seu é pôr na lista dos heterónimos os “espíritos” que o Fernando se entretinha a invocar, através da escrita mediúnica – a que ele chamava “romances do inconsciente”. Estas personagens – de “romances”, repare! -  não são autores, são só isso, personagens dessas ficções, com quem, aliás, o Fernando lidava ludicamente. Mas rendem aí uns treze lugares na sua lista!
E o que dizer do “heterônimo” “Serradura”, que o Stoker nomeia e o Sr. repete (p.388) e que é simplesmente o título de um poema do Sá-Carneiro? E o Sr. até diz que sabe disso! Mas sempre soma mais um!
E esses amigos das brincadeiras da infância que não deixaram texto literário nenhum (por isso não podem ser considerados “personalidades literárias” e muito menos heterónimos!), o Chevalier de Pas, o Capitaine Thibeaut, o Quebranto de Oessus? E retire também da sua lista as pessoas que existiram, sim senhor! como o Padre Mattos, (n.º 93) cujo nome, diz o Sr., foi “inspirado no psiquiatra  Júlio de Mattos!” (Esta intuição certeira que o Sr. tem para explicar a origem dos nossos nomes!). E não é que até ao psiquiatra o Sr. passa a chamar heterónimo? : “Como esse heterônimo, responde Pessoa ao inquérito da revista A Águia”(p.387)… Que trapalhada, Sr.Dr.! E olhe lá, se diz que o seu M.N.Freitas é o primo Mário Nogueira de Freitas, porque é que o faz constar na lista? Para contar no total dos 207, claro! E olhe que o Caturra Júnior (p.347) também existiu! Assim como o C.Pacheco e o Bi (disse-me o sobrinho Luís que assim lhe chamavam, em criança).
Deixe-me saudá-lo por ter essa imaginação que diz faltar ao Fernando: a revelação das origens dos nomes dos “heterónimos” são disso prova, como a que encontrou para o do serralheiro António e para o meu: o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Também apreciei imenso a aproximação que fez entre a corcundinha Maria José, que contemplava o serralheiro bem amado da janela, e Ofélia, que também aí se debruçava para ver passar o Fernando. Ah! delirei sobretudo com a metamorfose do Fernando em serralheiro, chamado António porque se está mesmo a ver que era a projecção do Fernando António ! Mas do que mais gostei foi do seu final, em que perfilha as opiniões de alguns “estudiosos” - diz - segundo os quais o Fernando teria como heterónimos D.Sebastião , António Botto, Mário de Sá-Carneiro, sendo a Ofélia um “anti-heterónimo”! E de seu livre alvedrio, o Sr. acrescenta Eliezer Kamenezky! E entram todos na contagem!
Continuo sem perceber, como disse na comunicação anterior, porque é que o Sr. - que lamenta que não haja nesta longa lista de heterónimos “um homem de sucesso ou membro da nobreza” - se identifica de tal modo com o Fernando, “esse homem infeliz”, e chama ao seu livro uma “quase autobiografia”!
Sr. coleccionador, continue a coleccionar todos esses pertences do Fernando, desgraçadamente vendidos avulsos em leilões, que com isso presta um grande serviço à pátria língua portuguesa! Mas não cumpra a sua ameaça: de contaminar os nossos estudantes, já tão vítimas da Internet, com as falsas notícias que o seu livro espalha, através duma escrita atrapalhada e coxeante.
Apoio o Fernando na sua militância por uma “pátria língua portuguesa”, para que conta sobretudo com o nosso amado Brasil, e por isso sou, como ele, implacável para com todas as ofensas que se façam à nossa língua e à nossa cultura, pensando e escrevendo.

P.S.
Já composta esta missiva, chegou-me às mãos – da vista e do entendimento – a reacção do autor do livro em causa, que injuriosamente me apoda de louco e de bêbado e me acusa de o não ter lido. Ora essa! Como prometi na anterior comunicação, depois da minha reacção à entrevista em que o autor sintetiza as suas teses - apenas uma introdução a uma crítica a valer - mergulhei de cabeça na caudalosa biografia.
Aí fica a prova. Se a leitura me continuar a inspirar comentários, talvez reincida noutra crítica a valer. 

Teresa Rita Lopes