Carta-monólogo de Álvaro de Campos
comunicada mediunicamente a Teresa Rita Lopes
Num iluminador semanário com o nome do astro-rei, de 20-4-2012, deparei com uma entrevista em que o entrevistado, José Paulo Cavalcanti Filho, “advogado pernambucano muito bem sucedido, ex-ministro da justiça de José Sarney”, como é apresentado pela entrevistadora, declara que “a obra de Pessoa é um testamento esperando que alguém o desvende”. O que só agora acontece – com a sua “quase autobiografia”, como a sub-intitulou, de tal maneira, confessa, se identifica com o Fernando. Tenho que reconhecer que é um gesto de grande coragem, visto que o apresenta como bêbado e homossexual, embora honestamente confesse a sua fracassada tentativa de encontrar alguma prova documental, quanto ao último ponto: por exemplo, uma “foto” do Fernando que “explicitasse” (diz ele) essas práticas. (Confesso que o gáudio de imaginar uma dessas fotos me solta o riso e desenruga a mente, que amanheceu chuvosa, como o dia. Desculpe, Fernando! Obrigada, senhor ex-ministro!). Mais: espreitando o Fernando pelo buraco da fechadura das suas investigações, o senhor ex-ministro - que biograficamente falando se identifica com o Fernando, não esquecer - narra as bebedeiras que ele ia cozer para a loja do amigo Eliezer, alfarrabista e judeu russo (“numa cama de arames”, precisa) para quem fabricava poemas a troco de uns trocos. Regozijemo-nos com mais estes inéditos para o activo do Fernando! Aqueles indigentes versos reunidos no livro Alma Errante, assinado Eliezer Kamenesky, saíram afinal da pena mercenária do nosso génio! Alerta, sôfregos descobridores de inéditos pessoanos, podem começar a salivar que vem aí mais material!
“O momento mágico” - revelou o biógrafo à entrevistadora, que lhe perguntara “Qual a fonte mais importante” para a sua quase-biografia - aconteceu no dia em que leu, no meu poema “Tabacaria”, o verso “Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz”. Então o ex-ministro pernambucano teve a sua epifania suprema: foi a correr à procura da lavadeira de Pessoa, Irene, que por sinal tinha uma filha, Guiomar, “por quem Pessoa se sentiu atraído”. Um pouco mais de coerência, senhor ex-ministro! Então o Fernando era homossexual e sentia-se assim “atraído” do pé prá mão, não só pela filha da lavadeira como pela Ofélia, a quem o Senhor seguidamente responsabiliza pela mudança da minha orientação sexual : diz mesmo que, a partir do namoro com Ofélia, “os textos do Álvaro de Campos vão-se transformando” e, mais radicalmente, “o engenheiro naval aparece casado, com a mulher ao lado a fazer tricô.” E justifica perante a entrevistadora os seus métodos investigatórios: “Quando você não conhece a vida dele não percebe estas ligações.” Desconfie desse seu saber, senhor ex-ministro: homossexual e bêbado sou eu, e com muita honra! – ou orgulho, como agora se diz. Está para nascer a pessoa que tenha visto o Fernando publicamente bêbado ou a namorar com um homem! Vai ter que fazer outro livro para apresentar essas provas!
O entrevistado biógrafo teve também, como o Fernando, o seu “dia triunfal”: esse em que conheceu a lavadeira e a filha de que eu falo em “Tabacaria” e concebeu a sua “quase autobiografia”, produto de incansáveis pesquisas, sobretudo encomendadas : ele até revela o nome de um dos pesquisadores: um tal Eleutério, historiador português, que andou anos à procura duma sapataria Contexto que o biógrafo (ou um dos seus funcionários) encontrou referida em letra impressa, talvez num recibo, ele não diz onde mas afirma ser seguramente fornecedora do Fernando. O historiador a soldo não encontrou rasto dessa importante sapataria mas o biógrafo tinha uma fezada que ela tinha que existir na Baixa, porque o janota do nosso Poeta, afirma ele, nunca se calçaria “na periferia. Só na zona mais cara”. E, ao cabo de grandes trabalhos, não é que o historiador acabou por descobrir – ou não fosse esse Eleutério descendente duma raça de descobridores! – que existira nos anos 20 uma sapataria na Baixa, sim senhor, chamada Contente! E quem exultou de contente foi o biógrafo que nos assegura que Contexto era gralha, o nome da sapataria só poderia mesmo ser Contente! Confesso que esta noite não vou dormir a tentar lembrar-me se a sapataria onde o Pessoa elegantemente se calçava era Contente ou Contexto. É que, sem isso, como afirma o biógrafo, nunca chegaremos ao entendimento da sua obra! - à revelação do “testamento” que a obra pessoana constitui e “que esperou 70 anos” “que alguém a desvende”. Salvé, senhor ex-ministro da Justiça, que com estas iluminantes revelações vai finalmente fazer jus ao génio do Fernando!
Com igual rigor investigatório e interpretativo, diz o autor da biografia (quase) que eu me chamo Álvaro de Campos porque o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Agora sou eu que me vou pôr a investigar sobre algo de tão importante para a minha identidade: com quantos Campos, além do engraxador, do moço dos recados e do criado de café, lidava quotidianamente o Fernando.
Peço a quem me ler, e tiver alguma informação a este respeito, que faça o obséquio de ma comunicar, que eu não tenho posses para pagar a informadores.
A determinação do nome e sítio exacto da tabacaria inspiradora do meu poema homónimo também fez perder bastante tempo, e sobretudo dinheiro, ao escrupuloso biógrafo que confessa o seu fracasso: nada apurou. Mas afirma a pés juntos que ela ficaria com certeza em frente da “mansarda da casa Moitinho, onde ele fazia serviços de correspondente estrangeiro”. Onde foi ele buscar essa da “mansarda Moitinho”? Outra epifania? Ou será porque eu afirmo nesse meu poema “sou e serei sempre o da mansarda”? Quem o manda levar demasiado a sério as minhas metáforas, sr. ex-ministro?
Mas tenho que reconhecer que deu a ganhar a muita gente: até reuniu uma junta médica para saber de que moléstia morreu o Fernando! “Eu criei uma junta médica. Fiz um calhamaço com todos os textos em que ele falava das dores e doenças e reuni os professores de Medicina mais importantes da minha terra, para sessões aos sábados na minha casa. Foram reuniões mastodônticas, examinando e discutindo toda a documentação. Até que se chegou à conclusão mais plausível de que Pessoa morreu de pancreatite”. Oh Senhor ex-ministro! a essa conclusão chegou há dezassete anos, sozinho, um médico da nossa praça, Francisco Manuel Fonseca Ferreira, que até a publicou em livro (Fernando Pessoa (A penumbra do génio), Livros Horizonte, 1995) – sem precisar para isso de “reuniões mastodônticas”.
Este livro põe-nos perante uma inovadora orientação da ciência médica aplicada a escritores, uma nova forma de autopsiar cadáveres ausentes. Olhe, e já agora, reúna de novo a sua junta médica e pergunte-lhe se pode sofrer de delirium tremens ( que o senhor diagnostica no Fernando) alguém com aquela letra tão certinha como era a dele quando se apurava. Leve-lhes, por exemplo, o requerimento com que ele se candidatou, em 1932, ao lugar de conservador-biliotecário do Museu Conde Castro Guimarães (esse a que o Senhor se refere, chamando-lhe “Museu de Cascais” – por favor, não abandalhe a nobre instituição, que ainda existe!).
Além disso, fiquei a saber, através desta entrevista, que o biógrafo conseguiu acesso a duas cartas da Ofélia “censuradas”, diz ele, isto é, não publicadas pela sobrinha do Fernando, sua proprietária, na esperança de encontrar uma revelação importante : “um aborto, por exemplo”. Oh Senhor Dr. ex-ministro: então diz que o Fernando morreu virgem (“Ele nunca teve mulher ou homem”) e admite que tenha engravidado a Ofélia? Por obra e graça do Espírito Santo, não? Só lhe falta admitir que por intervenção minha!
Mas oh! decepção suprema! o “assunto delicado” que farejava tinha apenas a ver com uma passagem (é a interpretação, errada, do biógrafo) em que a Ofélia conta que “tinha passado mal a noite com aquela “doença mensal” das mulheres”. E o nosso consciencioso biógrafo, que ia à espera de aparar um aborto, teve que se contentar com uns reles pensos higiénicos. Confessa: “Eu quase me mato…” Também não era caso para tanto, Senhor ex-Ministro… Um investigador-biógrafo tem que estar preparado para estas sórdidas surpresas…
Ah! tenho que ser sincero: aprendi uma coisa que não sabia: que o vaidoso do Fernando tinha “receita médica de 12 dioptrias mas usava óculos de 3 para não ficar com os olhos pequenos por causa das lentes grossas, e por isso aceitava ver tudo desfocado ao longe.”
Oh Fernando! só agora percebo porque é que você nunca me acenava quando eu vinha do Rossio, no início da Rua Augusta, e você aparecia emoldurado pelo Arco!
Mas olhe, senhor ex-ministro, coleccionador confesso de relíquias pessoanas: tem a certeza que esses óculos todos que lhe venderam como sendo do Fernando eram mesmo dele? Olhe que esse informador alfarrabista que comprou a loja ao Eliezer, e o pôs ao corrente das sestas alcoólicas que o Fernando lá fazia, teve à venda nesse seu estabelecimento, nos anos oitenta, óculos do Fernando, que eu bem me lembro. Mas creio que também uma bengala dele, e eu juro e trejuro que o Fernando nunca usou bengala nenhuma!
Fiquei impressionadíssimo com outra estória que o biógrafo narra, no livro e na entrevista em questão. Diz ele que a Ofélia contou a um jornalista da Globo que nada escreveu sobre isso nos jornais (rara discrição num jornalista!) mas relatou “como por destino” ao biógrafo (que, para isso, se sente messianicamente eleito pelo Destino!) que, quando o Fernando morreu, passou “toda a noite segurando a mão dele, já morto, no hospital, falando de tudo o que tinha ficado por dizer.” Esta estória – de “um romantismo incrível”, diz o biógrafo - já foi referida, citando precisamente a sua biografia, num congresso recente em que os sobrinhos do Fernando, por acaso presentes, lhe denunciaram a ficcionalidade: o Fernando foi assistido até aos seus últimos momentos, no hospital São Luís, pelo primo médico Jaime Neves que, mesmo que não fosse primo, não ia permitir que alguém ficasse toda a noite, “até ao nascer do dia”, a namorar com um cadáver. Essa gótica prática seria, admito, “de um romantismo incrível” mas, convenhamos, pouco corrente nos nossos prosaicos hospitais.
Agora confesso que estou em pulgas e me vou precipitar sobre o livro para saber a explicação do biógrafo para a razão pela qual o Fernando “tinha vergonha do próprio corpo e qualquer relação não seria nunca consumada.” O ex-ministro não a quis revelar, disse que a mulher o proibira determinantemente de falar disso nas entrevistas. Mas que está no livro. Será que o tal jornalista da Globo ou os investigadores a soldo do biógrafo falaram com alguém que tivesse visto o que, supunha eu, só a Mãe do Fernando contemplara, e apenas na sua primeira infância? O biógrafo ex-ministro tem que me ficar agradecido pela publicidade – e de borla! – que lhe estou a fazer ao livro! Pode ter a certeza que com esta revelação vai meio mundo precipitar-se para o comprar! As pessoas hoje em dia só compram este tipo de obras, em que o autor espreita alguém ou alguens pelo buraco da fechadura – de preferência, em pêlo!
Mas tenho que lhe fazer justiça, senhor ex-ministro desse ramo: tem que amar obsessivamente o Fernando para levar a vida a comprar “tudo” dele (“Eu tenho tudo!”, gabou-se à entrevistadora), até a sua colecção de selos, “os óculos que usava” (lembre-se do que a esse respeito lhe disse há pouco!), “a biblioteca pessoal dele” (então a da Casa Pessoa é imitação?). E eu amo quem ama o Fernando. Por isso, dê cá um abraço e continue a coleccionar “tudo”, objectos e informações sobre ele e os seus arredores, nos quais resido. Prometo que se comprar a Arca, como diz ter intenção, para a doar à Casa Pessoa, eu até lhe confidencio uma porção de coisas que mais ninguém sabe para o seu próximo livro! Faça isso, senhor ex-ministro da Justiça, com o que dará uma justa bofetada ao Estado português, que não comprou, no último leilão dos pertences do Fernando, esse símbolo da nossa identidade nacional, adquirido por um particular, aliás por um preço irrisório. E pensar que, com o dinheiro que foi e continua a ir buscar aos nossos bolsos para pagar os roubos feitos no BPN pelos parceiros e vizinhos do nosso Presidente, o Estado compraria essa arca milhões de vezes!
Prometo que me vou avidamente precipitar sobre o seu livro. Se o senhor entretanto comprar a arca, quem sabe se eu até vou escrever que saber o nome da sapataria onde o Fernando se calçava, e da rua da tabacaria que me inspirou e da lavadeira Irene e sua filha Guiomar é perfeitamente indispensável para entender a nossa obra – nossa, sim, que detenho um razoável número de quotas nessa empresa.