Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Fernando Pessoa et le Quint-Empire de l'Amour. Quête du Désir et alter-sexualité



Fernando Pessoa et le Quint-Empire de l'Amour. Quête du Désir et alter-sexualité[1]
(Fernando Pessoa e o Quinto Império do Amor. Busca do Desejo e alter-sexualidade)


Aníbal Frias



Sinopse do Livro

Como poeta da suspeita, Fernando Pessoa brinca com as identidades, com os corpos, com as sexualidades a fim de «ser tudo de todas as maneiras». Sua odisseia literária é muitas vez limitada a um teatro cerebral, a uma obra sem corpo, a um desejo recalcado. Em verso ou em prosa, com o Livro do Desassossego, sua aventura transporta-nos até ao centro do Desejo, nos seus fluxos e refluxos, desde as divisões do seu «eu» até à multiplicidade do seu ser. As sensações viajantes do poeta libertam as potencialidades de uma criação plena, favoreçando uma reinvenção de si.
Pessoa delineou um «ciclo do sentimento amoroso». Ele ordona-o poeticamente em cinco «impérios», da Grecia de Antínoo à Modernidade pan-erótica. Nesse percurso, que tem como ponto de partida e horizonte de mira o paganismo grego, desdobra-se a figura flutuante e móvel de Eros. A última etapa, nomeada «Quinto império», é o reino de Antéros. Esta personagem divinizada incarna, num futuro sonhado, um Outro-Amor neopagão que foge a todo tipo de categorização – um Amor projectado além da sexualidade e dos géneros masculino/feminino. Pessoa cumpre, como poucos escritores, o elocutório e ilocutório enunciado do Arthur Rimbaud: «L'amour est à réinventer».
A nossa investigação inaugura uma leitura aprofundada deste Ciclo – projecto inacabado de uma vida –, sublinha nele a riqueza poética e estilística, bem como a importância da sua dimensão intelectual à vista de outros escritos maiores. Estabelece que Antéros é o nome personificado de um singular e universal Quinto Império do Amor por construir.
Combinando uma dupla abordagem literária e filosófica, esotérica e (criticamente) psicanalítica, a nossa obra inova ao fazer dialogar Pessoa com Proust, Rimbaud, Blanchot, Yourcenar, com Merleau-Ponty, Foucault, Freud ou Nietzsche. O ensaio traz um contributo decisivo – e crítico – ao novíssimo paradigma dos estudos pessoanos baseado na corporeidade, no gender, na sexualidade. Pessoa não é apenas um labirinto interior e um ser etéreo. A corporeidade intervém no nascimento poético de Campos e Reis, cuja narração, conduzida pelo autor das Odes modernistas (o mais sexualizado de todos, é verdade), alimenta-se de um vocabulário homoerótico e transgender. Soares define-se como um «corpo escrevante», e a carta sobre a génese dos heterónimos (13/01/1935) encena uma escrita em acto e espacializada, onde são convocados a postura corporal e os afectos: quarto íntimo, folha e caneta à mão, escrever de pé, acercar-se de uma cómoda alta, gestos fulgurantes, num jacto, êxtase, choro de lágrimas verdadeiras...
O nosso estudo foi pensado, ao mesmo tempo, como uma travessia clara e viva da obra pessoana conhecida, e sobretudo menos conhecida, explorando alguns inéditos.
Três são as partes que organizam o livro.
A primeira, de natureza problematizante, aborda a questão das identidades e das sexualidades a partir de inúmeros textos do Pessoa, à luz da genealogia foucaldiana da sexualidade e das actuais perspectivas sobre o gender, ele mesmo objecto de questionamento. A recomposição das identidades elaboradas por Pessoa – múltiplas, desmultiplicadas, híbridas e carnavalizadas – não são apenas aquelas que adquirem corpo/corpus com os heterónimos. Mesmo aqui, os principais (e não só) heterónimos tornam-se duplos, ou múltiplos, ao modo da natureza ontológica e semântica do ser pessoano – um ser quantitativamente variado e qualitativamente variante. Os heterónimos heteronimizam-se, inclusive o mestre Caeiro que não deixa internamente, ele também, de evoluir (para o desespero dos seus epígonos, que o querem idealmente Um e Uno), e até mesmo de se transformar, experimentando de quando em vez, literariamente, «não ser [ele]», sendo, todavia, ele mesmo diferentemente, em todos os seus avatares, no campo, na cidade, na doença, ou no amor. Ao insistirmos aqui no processo do devir-outro(s), no outrar-se, e menos nos heterónimos, isto é, no modus operandi ao detrimento do opus operatum, talvez possamos ver, no que chamámos de «heteronimismo», um outro «ismo», ou um «super-ismo», dos mais complexos e abragentes.
Pessoa reinventa a figura do «eu» ao proceder, no plano ontológico e/ou gramatical, a uma desubjetivização/resubjetivização do sujeito, privilegiando o estar dos estados passageiros ao ser das substâncias reificadoras. Isso verifica-se quando, por exemplo, Soares fala em Estar homem, em vez do convencional «ser homem», ou quando introduz no ser a hibridização, com o hermafroditismo ortográfico: aquela rapaz, dissociando o sexo e o gender, numa arte de dizer que foje à gramática, sendo ela um meio que não um fim, e à ordem do discurso. A própria Maria José corcunda se define, ou melhor, se des-define positivamente, usando um epiceno, como sendo «uma espécie de gente», um ser transgender. Ao injectar, volontária e anarquizantemente, tais «confusões» na língua (Pessoa não diz que a «cultura consiste em introduzir confusão» na sociedade?), ele desconstroi pós-modernamente os sexos e as sexualidades. Podemos seguir um caminho outro que não aquele do tipo psico-biografisante, que interpreta as identidades e sexualidades pessoanas, literariamente falando, como tantos vácuos, feridas e indefinições privativas. Ora, estas qualidades fazem parte do ser, do ser finito e em devir, contingente e imanente. As falhas e feridas, o jogo do ser e do não-ser, o perpétuo «entre-existir» dramatizado, são, no fundo, o que oferece consistência e o que procura vertígio ao leitor da obra pessoana.
Ao «se» caracterizar – supostamente – como sendo de «um temperamento feminino com uma inteligência masculina», Pessoa estará a confessar-se? Mas ele recusa sempre, seguindo o exemplo dos seus alter-egos, a exibicionista e anti-literária «autenticidade». Desfaz, isso sim, as normas binárias da sua época (e da nossa), privilegiando como poeta uma «intersexualidade» avant la lettre. Aliás, a sua soi-disant auto-caracterização, ou retrato, não faz mais de que traduzir, numa expressão fingidamente pessoal, o dualismo sentir/pensar partilhado, ainda que numa combinatória variável, tanto pelo ortónimo como pelos heterónimos, e cujas figuras incarnadas da Ceifeira ou da Criança suja dos chocolates são as «femininas» metáforas alegorizantes do sentir, instância simbólica da Vida, oposta à reflectividade do Poeta, cujo abismo da consciência é, ao mesmo tempo, sua perda e seu poetizar. Como poeta-pensador, Pessoa desnaturaliza como precursor, com muita subtilidade (usando de paradoxos e da ironia – traço, diz ele, dos génios), as normas identitárias e as categorias sexuais modernas. As classificações artificiais dos «contabilistas em gavetas» (Campos), ou os «letreiros» (Caeiro) dos racionalistas, são rejeitados por não se adequarem à Realidade transvisível que liga intimamente as coisas, os seres, as coisas e os seres. Verifica-se que Pessoa está, antecipadamente, na ponta da (pós)modernidade, sendo nosso grande contemporâneo como poeta desassossegador que ele é, como indisciplinador das almas – e dos corpos, que ele tenciona ser.
Um segundo desenvolvimento explicita, detalhadamente e numa close reading, o longo poema escrito em inglês, pouco ou nada estudado, Antínoo. A sua comum qualificação de «homossexual» impede de reter nele os papeis fulcrais da arte, da memória, da escrita ou da temporalidade, por ser uma grelha redutora, isto é, uma dessas «explicações metafísicas» recusadas, como as de Deus ou da Alma, por Campos por não explicarem nada, ao quererem explicar tudo. São estudados as figuras de estilo, bem como o elemento da chuva, que, mais de que um simples décor, assume um papel estruturante na composição, e também a presença, nunca observada, de um singular coro grego que faz do drama fúnebre uma moderna tragédia. discute-se ainda a presença-ausência do morto Antínoo, como uma das formas da Ausência no Texto pessoano, juntamente com o Marinheiro, Deus, a Mulher, ou o próprio Pessoa, esse fantasma que recobre da sua sombra toda a obra; e verifica-se uma operação de (re)escrita por parte do Pessoa, à maneira de um palimpsesto pre-borgesiano, das Memórias perdidas do imperador Adriano.
Uma última parte, mais longa, aborda o ciclo do sentimento amoroso, o qual é constituído por cinco fases historico-poéticas : Grecia-Antínoo, Roma-Epithalamium, Cristandade-Prayer to a Women Body, Modernidade-Pan-Eros, e o Quinto Império-Anteros. Esta fase final, ainda que sui generis, é comparada com o Quinto Império cultural e espiritual da Messagem, de que, porém, se distingue por falar a linguagem do Desejo em busca ou como Busca, do «Outro Amor» que está por inventar, cujos rosto e corpo neopagãos, positivamente indefinidos, estão por inventar. Apesar de só terem sido publicados os dois primeiros poemas, os três seguintes são hipoteticamente «recompostos» a partir de fragmentos, de alguns inéditos, ou então a partir da produção do poeta e do que o autor foi dizendo sobre os poemas do Ciclo.
O que ressalta desta epopeia cíclica, e da poetisação de uma história «messiânica», é um outro ciclo, mais originário: aquele do processo infinito (e indefinido porque de uma obra aberta porvir se trata) da criatividade, especialmente a literatura, «síntese de todas as artes». Antínoo, cujo futuro renascimento glorioso é prognosticado por Adriano, volta no «fim dos tempos» para fundar um «Quinto Império de poetas» na figura do Pessoa, cujo segundo apelido, António, é o exacto anagrama do belo efebo. É o Ciclo arquitectónico que dá coerência e pertinência a cada um dos poemas. Ainda que se possa ler cada texto em si, não se pode plenamente compreender o seu sentido, porque o poema está indexado à trama cíclica. Devemos, assim, nunca perder de vista a linha serpentíforma do Ciclo que confere significação (esotérica) e orientação às entidades que o compõem. No seu conjunto, as unidades poemáticas constituem um só Poema orgânico, como na Messagem. Ao esquecerem-se da estrutura logico-dinámica do Ciclo, os comentadores correm o risco de cair no biografismo (reduzindo a obra a uma «confissão», em detrimento da arte de fingir), ou projectam juízos de valor ao atribuírem «obscenidade» aos poemas publicados do Ciclo (recuperando, supostamente, uma qualificação do próprio autor que, sabemo-lo, separa a arte modernista e a moral), ou vêem misoginia no Epithalamium, onde, pelo contrário, se reflecte, retoricamente acentuada, a «bestialidade» dos Romanos que estão envolvidos numa fase «decadente», na qual os prazeres superam a criatividade. Pode-se até ler, nesta versificação, uma crítica ao «cristismo» e observar, numa leitura do tipo gender studies, uma encenação performativa da dualidade-dualismo Mulher/Homem e da entrada ritualizada na sexualidade normativa e reprodutiva (casamento, família), bem como uma «denuncia» das violências sociais e «sexuais» (o poder fálico do marido conquistador) feitas ao corpo feminino, pela carga irónica e satírica, logo questionante, das cenas cruas e cruéis.
A conclusão insiste sobre o facto de que o ortónimo e os heterónimos tornam-se grandes e rafinados intérpretes dos sentimentos e do desejo. Estes temas, ao contrário do que se pensa, atravessam a obra inteira, do Cancioneiro às Quadras, das cartas do namoro ao Fausto, da prosa de Jean Seul de Méluret aos Ruba‛iyat, sem falar dos inúmeros poemas soltos, alguns recentemente descobertos ou por (re)descobrir. Enquanto processo infinito, o Desejo integra na sua dinâmica a falta, o vácuo e a consciência. Colocado no horizonte da sua irrealizável realização, o Desejo, quer sob forma de prazer diferido (Adriano lembra-se com saudade, e corporalmente, de seus amores com Antínoo), quer como prazer «translato» e sublimado (ao transformar Adriano em estátua/arte/escrita o seu amante), quer com o Quinto Império do Amor e o Desejado Dom Sebastião, ambos esperados, – em todos os casos, o Desejo aproxima-se, em Pessoa, das figuras de Deus e da Verdade, estando sempre Além. A literária (e para alguns física) «impotência» de Pessoa (a semelhança do Barão de Teive), o seu «angelismo erótico» inferido, a passiva sexualidade de Campos que é, afinal de contas, dialectisada pelo heterónimo que, na verdade, torna-se, ele escravo submisso, autoralmente senhor dos seus Senhores, e mestre da sua obra, – todas estas «impotências» convertem-se numa rara potência criativa num sujeito prolixamente impressionável por tudo. Nele, o amor é «translato», lembrado ou pintado em todas as suas dimensões, física, metafísica, ontológica, esotérica, materna, visto enquanto força atractiva ou repulsiva, e restituido nas suas diversas manifestações, entre a palavra, o grito e o silêncio. No ortónimo e no Soares, a superação ou até a negação loquaz do amor carnal, não impede, muito pelo contrário, de falar dele e da labilidade dos afectos como poucos poetas o fizerem. Pois, este domínio, enquanto tocado pela escrita, não se separa da literatura. Nesta medida, ambos adoptam como guia um princípio absoluto: a «arte de irrealizar» (Soares) que caracteriza as crianças jogando... e os grandes artistas criando, aqueles do dramático fingimento. Não assistimos a uma denegação, ou recalcamento, apenas verificamos uma negação activa da realidade dada – seja ela materialidade ou sexualidade. Para a criança como para o poeta, o sonho construtivo, isto é, o poder da imaginação, constitui uma instância soberana. Insiste-se, por fim, na necessidade de requalificar os injustamente desqualificados poemas Antínoo e Epithalamium, convidando a relê-los com um olhar novo, desprovido de preconceitos. Só assim, eles poderão aparecer ao leitor, e ao estudioso, como duas obras-primas do Fernando Pessoa.
O nosso livro tem uma extensa bibliografia activa e passiva, bem como um prefácio do Robert Bréchon, o grande biógrafo de Pessoa, no qual aponta a falta de estudos sobre «o desejo sexual» no poeta.


[1] Paris, éditions Pétra, 2012, 406 p. Agradeço a Nuno Ribeiro pela sua revisão do português.