Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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domingo, 7 de agosto de 2011

"O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu" - Paulo Borges

Introdução

            Publicamos aqui textos inéditos ou dispersos sobre Fernando Pessoa, muito recentes (de 2008 a 2010) e todos eles alterados, por vezes substancialmente, para este livro. Une-os a tentativa de pensar em Pessoa, e a partir de Pessoa, alguns dos temas que lhe são centrais e que ocupam também um lugar destacado no nosso pensamento e produção filosóficos: a experiência da vacuidade, enquanto transcensão de todas as referências, conceitos e sentidos, incluindo o de “Deus”; a ficção de si, do(s) eu(s) e do mundo, como uma i-lusão ou jogo criador, aqui patente na experiência heteronímica; a emergência da mesma vacuidade nisso que (não) há entre uma coisa e outra, isto e aquilo, esse entre-ser tão bem figurado pelo “King of Gaps” pessoano e que dá o nome à revista/projecto que dirigimos: Cultura ENTRE Culturas; a possibilidade de estados diferenciados, não conceptuais e não intencionais, de consciência, precisamente os que mais ensinam sobre os anteriores temas e cuja tentativa de expressão percorre toda a obra pessoana, conferindo-lhe a “inquietante estranheza” que a singulariza e tornando difícil compreendê-la sem os ter em conta; os sentidos múltiplos de Portugal e da Lusofonia, bem como do Quinto Império, enquanto consumação da sua proclamada vocação universalista num estado transmundano de consciência, na linha de Uma Visão Armilar do Mundo [1].
Além disto, o presente livro oferece estudos comparados entre Pessoa e outros autores – Antonio Machado, Jorge Luis Borges e Emil Cioran - cujas obras dialogam implicitamente com a sua em torno da questão fundamental que a atravessa e que é o eixo do presente volume: a relação entre mesmo e outro, uno e múltiplo e a experiência de um vazio impessoal como matriz de todas as possibilidades, desassossegadoramente aberta no próprio seio do sujeito e do eu convencional, que, ao perder o fundo e a forma da sua aparente definição, se multiplica ficcionalmente em ilimitadas modalidades possíveis, sem que nenhuma delas possa cristalizar-se e fixar-se como algo de real e distinto do abismo de onde procede. Daí o título do livro, por sugestão directa das metáforas teatrais que Pessoa aplicou à sua experiência heteronímica (“drama em gente” ou “em almas” [2]): O teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu.
            Este livro prossegue uma relação próxima, e por isso crítica, com a experiência pessoana, que data da adolescência, embora o impacto de Mário de Sá-Carneiro tenha então excedido o de Pessoa. Os temas pessoanos conduziram-nos depois a Teixeira de Pascoaes, que consideramos indispensável ler e meditar em conjunto com o poeta da “Ode Marítima” para se compreender o mais fundo de um e outro e a exterioridade da sua aparente divergência [3].
            É gratificante lançar este livro ao jogo do mundo no momento oportuno em que a obra pessoana começa a ganhar maior visibilidade filosófica, nacional e internacional, após sobre ela ter sobretudo incidido o foco dos estudos literários. Com efeito, a leitura filosófica de um “poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas” [4], como se definiu, parece todavia mostrar haver nele mais densidade de pensamento filosófico - embora formulado por vias híbridas e heterodoxas em relação à tradição ocidental mais académica, como acontece com o mais singular pensamento português – do que ele próprio tendia a admitir. Na verdade, alimentamos a expectativa de que os presentes ensaios possam pelo menos sugerir o imenso diálogo implícito que a obra pessoana sustenta e promove com algumas das mais profundas questões que atravessam a filosofia e a cultura planetárias, ocidentais e orientais, bem como as muitas sugestões e pontos de partida que oferece para uma reflexão inovadora sobre questões fundamentais da mesma tradição filosófica . Esperamos que a constatação disto anime as abordagens filosófica e literária de Pessoa a darem-se interdisciplinarmente as mãos para que toda a sua riqueza de pensador e escritor possa revelar-se a uma outra luz, inaugurando uma nova fase dos estudos pessoanos.
            Se ousamos esperar que o presente livro possa contribuir para tal, minimamente que seja, acalentamos sobretudo a aspiração de que, através da complexidade da experiência pessoana – labiríntico e caleidoscópico entrelaçamento de luzes, trevas e sombras - , possamos nós encontrar o fio de Ariana simplificador e libertador da nossa própria complexidade.

Paulo Borges.“Introdução” a O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu,
Lisboa, Verbo, 2011.

Paulo Borges é filósofo, ensaísta e investigador pessoano. Entre várias actividades que vem desenvolvendo (destaque para a importante revista Cultura Entre Culturas), tem dedicado especial atenção ao espólio de Fernando Pessoa sobretudo a parte dos escritos relacionados com filosofia da religião, onde se encontram textos inéditos, futuramente publicados por ele.


[1] Cf. Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010.
[2] Cf. Fernando Pessoa, Obras, II, organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.1024.
[3] Cf. Paulo Borges, O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2008.
[4] “I was a poet animated by philosophy, not a philosopher with poetic faculties” - Fernando Pessoa, Obras, II, p.81.