Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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domingo, 7 de agosto de 2011

PESSOA, O PRECURSOR - Teresa Rita Lopes


Mal sabíamos nós, os jovens contestatários que, nos anos sessenta, enfrentávamos a Pide, a polícia de Salazar, que tínhamos em Pessoa um precursor! Logo ele, que os amantes de poesia da minha geração liam com recolhimento, tentando ignorar o que dele se dizia, que era um reaccionário, favorável ao Estado Novo que, por isso, lhe tinha premiado Mensagem e lhe divulgava os versos nos livros-únicos de então.
Seguramente por isso nunca simpatizei com Mensagem. Nem hoje, que sei que o nosso poeta que, inicialmente, acolheu Salazar com esperança – de que salvasse do caos o seu tão amado Portugal – foi ficando desconfiado dessa personalidade que julgara íntegra e acabou por explodir em violentos escritos: poemas e textos vários de prosa (até em francês, para o demolir além-fronteiras). Quando eu e os meus parceiros de incursões na célebre Arca  descobrimos o chorrilho de impropérios com que o nosso Poeta fustigara o “seminarista da contabilidade”, o “aldeão letrado”, desabrochámos em pirotécnico júbilo! E mais ainda quando encontrámos os fragmentos de uma carta que foi escrevendo ao sabor da sua indignação, ao longo de vários dias, em que pedia ao Presidente da República que destituísse o seu Presidente do Conselho por ser, assim mesmo dito, “incompetente para o cargo que assumiu”.*
E pensar que, passados quase trinta anos (a projectada carta, que, provavelmente não chegou a acabar, data de 1935, ano da morte), os jovens da minha geração escreveram ao presidente da República, já outro, uma carta no mesmo sentido a pedir, pelas mesmas razões, a demissão do mesmo Salazar! É evidente que esse belo gesto serviu apenas para fornecer à Pide mais alguns autógrafos. Mas hoje, quando, tantas vezes, me zango com os Portugueses, gosto de rememorar esses belos gestos inúteis, mas idealistas, que levaram muitos de nós para o exílio ou para a prisão. Todos sabíamos o risco que corríamos e arriscávamos. Hoje as pessoas só arriscam na Bolsa.
Nessa carta que nos chegou aos bocados, escrita em folhas soltas e em diferentes momentos, Pessoa eleva a voz, no tom de um sermão desse Padre António Vieira que tanto admirava, para exclamar: “Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos que a ordem nas ruas, que as estradas, as pontes e as esquadras tinham de ser compradas por tão alto preço – o da venda a retalho da alma portuguesa.” Noutra folha – noutro fragmento – remata, em prosa, com uma afirmação que também fará em verso: “Realmente é um Estado Novo, porque este estado de coisas nunca antes se viu”.
Num longo poema, repetiu, de facto:

Sim, é o Estado Novo, e o povo
Ouviu, leu e assentiu:
Sim, isto é um estado Novo
Pois é um estado de coisas
Que nunca antes se viu.

E mais adianta, acrescenta:

Com “directrizes” à arte
Reata-se a tradição,
E juntam-se Apolo e Marte
No Teatro Nacional
Que é onde era a Inquisição.

Este poema, datado de 29.7.1935, faz referência, com a palavra “directrizes” entre aspas, ao discurso que Salazar fizera, a quando da distribuição dos prémios com que Pessoa fora também contemplado com Mensagem, em 21.2.1935, em que, como denuncia na tal carta ao Presidente da República, “abre a sessão com um discurso em que enxovalha todos os escritores portugueses – muitos deles seus superiores intelectuais – com a fútil imposição de “directrizes” que ninguém lhe pediu nem pediria(…)”. Por isso, acrescenta , “com uma inabilidade de aldeão letrado, de um só golpe afastou de si o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma benevolência, já um tanto impaciente, e uma tolerância, já vagamente desdenhosa”.
É evidente que Pessoa refere o seu próprio estado de espírito. Depois dessa histórica sessão, a que não assistiu (deve ter seguido pela rádio e ter lido o discurso no jornal), a sua rejeição de Salazar foi brutal e definitiva. Aliás, essa tal “tolerância, já vagamente desdenhosa” e “benevolência, já vagamente impaciente”, com que define a sua própria atitude frente ao Presidente do Conselho já tinha sido sismicamente abalada com a apresentação à Assembleia Nacional de um projecto de lei visando a interdição de todas as  associações secretas,  muito particularmente a Maçonaria, que Pessoa sempre prezou e defendeu, embora declarasse nunca a ela ter pertencido. Pessoa publicou em 4.2.1935,no Diário de Lisboa, um violento artigo contra essa proposta, que veio , contudo, a ser aprovada sob a forma de uma nova lei ( nº 2), em 5.4.1935.  Aconteceu, portanto, que a distribuição dos prémios aconteceu  dezassete dias depois do artigo de Pessoa, e funcionou como azeite no fogo. Pouco antes de morrer, Pessoa, em carta a Adolfo Casais Monteiro, recusa a colaboração que ele lhe pede para a Presença, declarando que não mais publicaria em Portugal porque “acabara de acontecer” algo que o impossibilitava de o fazer. Não sabemos o quê. Um discurso de Salazar ouvido pela rádio ou lido no jornal? Notícia chegada de que o seu nome era censurado nos jornais, como afirmou?
É verdade, Pessoa fora para a lista negra. Morreu com essa raiva na alma.
E com o desgosto de não ter podido perseverar numa luta que empreendera, como se depreende do fragmento de um artigo, posterior ao de 4.2.1935 mas nunca publicado, em que ameaça: “Amigos reaccionários: em guarda!” **
E eu que tanto sofri, durante tanto tempo, por imaginá-lo reaccionário!

*Pessoa Inédito: organização de Teresa Rita Lopes. Lisboa, 1993, Livros Horizonte, pp.362-379.
** Ibidem, p.333

Teresa Rita Lopes