Sobre “Pessoa ou o caminhante livre” de Claire Xavier
Ricardo Marques
O que é e como se pode ler a “alma” de uma cidade? Por outras palavras, quais são as características invisíveis de um lugar que, tendo como natureza intrínseca a sua própria metamorfose perpétua, se afirma exactamente pelo contrário do imaterial, pela visibilidade dos elementos que a vão constituindo? De Lisboa, a “cidade triste e alegre” de Victor Palla e Costa Martins, são famosas várias fotografias que mostram os mesmos lugares-comuns que se vêem nas fotos de Claire Xavier (a calçada, as janelas, o eléctrico). Se encararmos Pessoa/Bernardo Soares, eterno habitante de uma mansarda da Rua dos Douradores, como a sombra autobiográfica de Pessoa, estas fotografias mostram a forma como o espaço citadino foi o LAR, palavra tantas vezes utilizada nesta obra, de onde todo aquele universo literário nasceu – e é nesse caminho livre, nessa senda da sombra, que todos nos sentimos submergir ao ver estas imagens.
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O que é e como se pode ler a “alma” de uma cidade? Por outras palavras, quais são as características invisíveis de um lugar que, tendo como natureza intrínseca a sua própria metamorfose perpétua, se afirma exactamente pelo contrário do imaterial, pela visibilidade dos elementos que a vão constituindo? De Lisboa diz-se ser, por exemplo, a “cidade branca”, como cunhou o filme de Alain Tanner de 1982, ou uma das “cidades das sete colinas”, ou ainda inúmeros outros epítetos que foi criando ao longo de séculos e que as obras literárias foram espelhando. Assim, podemos constatar que neste processo de entender o “espírito” de uma cidade, se parte e se acaba no material e no visível para inventar e mitificar o que uma cidade nos transmite e não se vê – o invisível. Daqui para a ideia de sombra é um breve passo.
Gostaria, nesta breve apresentação, de urgir todos a partir também para estas fotografias de Lisboa, pela objectiva de Claire Xavier, com esta ideia em mente.
De Lisboa, a “cidade triste e alegre” de Victor Palla e Costa Martins, são famosas várias fotografias que mostram os mesmos lugares-comuns que se vêem nas fotos de Claire Xavier. O cenário lisboeta é apresentado em cada uma das fotografias através da selecção de alguns elementos simbólicos que a caracterizam, em que o mais presente é claramente a “janela” ou, em segundo lugar, a “calçada portuguesa” com o seu padrão. Se as relacionarmos directamente com o contexto pessoano, conseguimos percepcionar uma série de elementos que estão presentes neste universo – o eléctrico, as escadas com os seus ferros, as árvores da cidade, e até um café e uma tabacaria que ecoa o famoso texto do escritor. No entanto, e para usar a terminologia de Roland Barthes, Claire encontra o ponto de equilíbrio entre o “studium” – essa característica, exterior às próprias fotografias, mas que provém mais da técnica e da manipulação consciente do mundo – e o “punctum”, esse não-sei-quê totalmente inconsciente que nos toca enquanto espectador, e que nos leva directamente para o interior da fotografia. Transmutado para este caso específico, Claire Xavier apresenta a sua Lisboa das janelas, pátios e calçadas de uma forma pessoal e artística, mas incorpora-lhe magicamente um “punctum” que é própria alma de Lisboa, a sua eterna sombra literária e que tanto a cantou, Fernando Pessoa.
Sabemos que a grande influência intertextual destas imagens é o próprio Livro do Desassossego. N’O Livro, são também várias as referências à ideia da sombra. O vocábulo ocorre sobretudo associado ao importante binómio sono/sonho, por vezes servindo um momento crepuscular do dia (e metaforicamente a atmosfera do livro) e sempre seguindo uma ideia de antítese apolíneo/dionisíaco com o contraponto do sol, bem como a projecção de um outro eu psicanalítico, ambos desenvolvimentos metafóricos bastante embrenhados na nossa cultura ocidental. A sombra é ainda sinal de período de estagnação: (126) “Tenho grandes estagnações. [...] Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer.”. Vejamos algumas passagens:
[33][1]
Nos primeiros dias do Outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.
Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.
[83][2]
[…] Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam — só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente. […]
[100][3]
[…] Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao quase crepúsculo —, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.
Por fim, e visto estas serem fotos que são livremente inspiradas n' O Livro, gostaria de terminar esta apresentação com uma passagem dessa obra fundamental do século XX português, e que serve que nem luva no cenário e na atmosfera destas fotografias de Claire Xavier:
[31][4]
O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas.
Se encararmos Pessoa/Bernardo Soares, habitante de uma mansarda da Rua dos Douradores, como a sombra autobiográfica de Pessoa, estas fotografias mostram a forma como o espaço citadino foi o LAR, palavra tantas vezes utilizada nesta obra, de onde todo aquele universo literário nasceu – e é nesse caminho livre, nessa senda da sombra, que todos nos sentimos submergir ao ver estas imagens.
Ricardo Marques é investigador do Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Actualmente está desenvolvendo uma pesquisa sobre a importância das revistas para o Modernismo Português. A sua investigação possibilitará aos estudiosos do modernismo português o acesso a informações de extrema importância e utilidade.